Por Álvaro Costa e Silva *
Catorze anos antes de publicar A fogueira das vaidades, Tom Wolfe escreveu um ensaio sobre o “new journalism” (ou “jornalismo literário”, como também ficou conhecido no Brasil). O movimento combinava técnicas de apuração, observação e objetividade com recursos da literatura de ficção na hora de escrever para jornais e revistas. O texto saiu em 1973, e havia mais de 10 anos que o próprio Wolfe era o craque do estilo renovador, o qual surgiu para ele meio sem querer ao propor para a Esquire uma reportagem sobre a cultura “hot rod” (de carros modificados) do sul da Califórnia.
Mas o artigo ia além de mapear o “new journalism” praticado por nomes como Norman Mailer, Truman Capote, Gay Talese, Joan Didion, Hunter S. Thompson, Jimmy Breslin, Terry Southern – cada um na sua, mas movidos pela mesma gana de invenção com a matéria-prima da verdade. Tom Wolfe, ao puxar a brasa para sua sardinha, aproveitava para dar um pau na ficção americana que se produzia na época. O mínimo que ele dizia era que, depois da grande geração da primeira metade do século 20 – Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, William Faulkner, John Dos Passos –, o talento deteriorara. Ou, para usar adjetivos do articulista, andava “fraco, pálido e desvalido”.
O que Wolfe apresentava como alternativa? Uma volta aos moldes do século 19, atualizando-os: “Um batalhão ou uma brigada de Zolas por este nosso país selvagem, bizarro, imprevisível e incrivelmente barroco, a fim de recuperá-lo como propriedade literária.” (Note-se a eleição do francês Émile Zola, maior representante da escola naturalista, como modelo proposto para o romance jornalístico ou documental. No futuro, Tom Wolfe ganharia o epíteto de “Balzac da Park Avenue”, sem dúvida um baita elogio, mas não sei se no fundo ele ficou inteiramente satisfeito.)
Cá pra nós, o jornalista estava advogando em causa própria, preparando o terreno para sua aparição como romancista. Em 1987, com o lançamento de A fogueira das vaidades, ele serviu ao público a sua receita: um romance abrangente e panorâmico, sem qualquer rasgo de modernismo ou experimentalismo, sobre como as pessoas viviam na Nova York dos últimos anos do século 20. Os leitores adoraram – best-seller instantâneo – e continuam adorando. Experimente reler o livro hoje (ou ler pela primeira vez): a mágica continua a mesma, intocada, exatamente como acontece com os clássicos de Zola, Balzac ou Dickens. É uma obra extensa – mas como mostrar a vida de outro jeito? – e mesmo assim a leitura corre rápida, impossível parar de virar as páginas.
O protagonista é Sherman McCoy, corretor da Bolsa de Valores de Wall Street, que ganha um milhão de dólares por ano e mora num apartamento de catorze cômodos em Manhattan. Na cena que detona a ação, McCoy, a bordo de um Mercerdes coupé, perde-se no Bronx e entra em pânico com a pobreza em volta. Na tentativa de encontrar uma saída, a amante do personagem, Maria Ruskin, assume o volante e acaba atropelando dois jovens negros. O casal se manda, sem prestar ajuda. Começa o inferno, ou seja, uma jornada pelo avesso do sucesso.
Na vasta galeria de tipos, destacam-se o ambicioso promotor Abe Weiss, de olho nas eleições para a prefeitura; o jornalista inglês Peter Fallow, que vive bêbado (Paulo Francis o considerava a maior criação do romance); e a figura do reverendo Reginald Bacon, do Harlem, picareta manipulador de mentes e almas. A Nova York do dinheiro e do poder jamais havia sido pintada de maneira tão cruel e satírica.
A prosa de Tom Wolfe é um caso à parte. Ele escreve como se fosse um espectador perplexo com o mundo que não para de girar a sua frente. Mas, ao mesmo tempo, parece ter o domínio de toda e qualquer ação. Um Senhor do Universo, tal e qual o personagem Sherman McCoy considera a si mesmo. Sendo assim, pode usar e abusar da oralidade, do fluxo de consciência, de gírias e palavrões. Salpicar pelo texto reticências, exclamações e onomatopeias à vontade – todos vão entender e curtir.
Algumas cenas de A fogueira das vaidades são tão boas que, uma vez lidas, não saem mais da cabeça do leitor. No meu caso, duas são inesquecíveis:
1. Para falar com a amante longe dos ouvidos da mulher, Sherman McCoy resolve levar o cachorrinho bassê para passear. Mas não contava com a chuva nem com a resistência do animal: “Ele agora puxava para um lado, e o cachorro, para o outro, a guia esticada entre os dois. Era um cabo de guerra entre um homem e um cachorro… na Park Avenue. Por que diabos o porteiro não voltava para dentro do prédio que era seu lugar?”
2. E essa sensação de ressaca para bebum nenhum botar defeito: “A campainha do telefone foi a explosão que acordou Peter Fallow dentro do ovo despojado da casca em que apenas a membrana vitelina permanecia intacta. (…) Se tentasse se levantar para atender o telefone, a gema, o mercúrio, a massa venenosa, se deslocaria e rolaria e romperia a membrana e seu cérebro escorreria.”
Quando Tom Wolfe morreu, aos 88 anos, em maio de 2018, nove entre dez obituários mencionaram os seus ternos brancos. O segredo não estava no traje, mas no talento de quem o usava. Livros de ficção como A fogueira das vaidades, de reportagens como Os eleitos e O teste do ácido do efeito elétrico ou de ensaios como A casa pintada – todos serão relançados pela Rocco – são a prova de sua permanência. Como jornalista. E como romancista.
Álvaro Costa e Silva é jornalista e colunista da Folha de S. Paulo