Um argentino de Paris*
por Álvaro Costa e Silva28 de maio de 2015
No Brasil pouca gente conhece Copi. E mesmo na Argentina, onde nasceu, foi só a partir dos anos 1990 que sua obra passou a ser de novo traduzida (escrevia, de preferência, em francês) e reeditada, sob o impacto de um livro de César Aira, singelamente intitulado Copi, de 1991, que transcrevia quatro conferências dadas três anos antes para um público não superior a vinte alunos no Centro Cultural Ricardo Rojas, da Universidade de Buenos Aires. Apenas na Argentina um rápido curso, do tipo “como ler fulano”, e um pequeno mas instigante volume, de pouco mais de cem páginas, conseguem a façanha de redescobrir um autor vital. Mandá-lo de volta para o limbo será difícil, e esta edição em português, com tradução do poeta Carlito Azevedo, de dois de seus relatos – O uruguaio e A Internacional Argentina – é prova disso.
Raúl Natalio Roque Damonte Botana nasceu em Buenos Aires, em 22 de novembro de 1939. A origem do apelido Copi – que se tornaria identidade literária – é contraditória. O escritor afirmou no livro La Guerre des pédés que se trata de um anagrama de Pico. Ele mesmo, porém, explicou em entrevistas que era assim que sua avó materna o chamava na infância. A hipótese é confirmada pelo crítico de teatro Osvaldo Pellettieri no prólogo à edição argentina da peça Une Visite inopportune: quando criança, ele era tão branco que parecia “un copito de nieve”. O certo é que ficou Copi (pronuncia-se Côpi), um nome nada convencional para um autor idem.
Era neto do uruguaio Natalio Botana, fundador-proprietário do jornal Crítica (1913-1962), que revolucionou a imprensa argentina ao misturar sensacionalismo e intervenção política à qualidade do texto (em suas páginas colaboraram Jorge Luis Borges e Roberto Arlt). A avó, Salvadora Medina Onrubia, era poeta e dramaturga de ideais anarquistas que, além de lhe fornecer o pseudônimo, exerceu importante influência na formação do escritor. Completam o lado familiar – que Copi retrataria sem pena no livro La Vida es un Tango, um dos poucos que escreveu em espanhol, como um bando de drogados, racistas e pedófilos – o pai jornalista e político Raul Damonte Taborda, que primeiro foi homem de confiança do general Perón para depois se tornar ferrenho adversá¬rio dele e cair em desgraça, e a mãe Georgina, tratada pela alcunha de “China”.
Fugindo do peronismo, os Damonte Botana se exilaram primeiro no Uruguai. Com a queda de Perón, retornaram a Buenos Aires, e o pai abriu o jornal Tribuna Popular (1955-1958), no qual Copi publicou os primeiros textos e ilustrações satíricas antes de se mudar definitivamente para Paris, em 1962. Só voltaria à Argentina duas rápidas vezes, em 1968 e 1987, tornando-se um “argentino de Paris”. O exílio, assim como para muitos autores conterrâneos (de Julio Cortázar a Manuel Puig, de Juan Gelman a Juan José Saer, de Sergio Chejfec a Rodrigo Fresán), foi condição determinante para a realização de sua obra.
Recém-chegado à capital francesa, ganhou a vida vendendo desenhos nas ruas. Logo se ligou ao grupo Teatro Pânico, fundado pelo espanhol Fernando Arrabal, pelo chileno Alejandro Jodorowsky e pelo francês Roland Topor. Ao longo de sua trajetória como dramaturgo, escreveu mais de uma dezena de peças, entre as quais se destacam Un Angel para la Señora Lisa, La Journée d’une rêveuse (levada aos palcos parisienses em 1968 pelo argentino Jorge Lavelli, amante de Copi), além dos monólogos Loretta Strong e Le Frigo (que ele próprio representou com êxito). Duas delas, Cachafaz e La Sombra de Wenceslao, foram editadas postumamente, em 1993. A encenação de Eva Perón, fantasia sobre os últimos dias da primeira-dama argentina, interpretada por um ator travestido, sofreu um atentado da direita peronista no Théâtre de l’Épée de Bois, em 1970.
O trabalho de Copi como desenhista começou a ser notado na revista Le Nouvel Observateur, na qual criou, em 1964, seu personagem mais famoso: La Femme assise, ou La Mujer Sentada, cuja vida (que pode parecer monótona, mas está longe disso) é manter conversas absurdas com galinhas ou caracóis. No estilo de diálogos que beiram o surrealismo, mantém alguns laços de aproximação com o cartunista brasileiro Fortuna, sobretudo a série de histórias em quadrinhos Madame e seu bicho muito louco, publicadas nas páginas do Pasquim e das revistas Bicho e Careta. Com extensa produção de comics, Copi levou sua assinatura para Bizarre, Hara-Kiri, Charlie Hebdo, Gai-Pied e Libération (França), Linus e Il Giornalone (Itália), Tia Vicenta (Argentina) e Triunfo (Espanha).
O escritor, desenhista, ator e dramaturgo morreu de aids em 14 de dezembro de 1987. “Sou tão vanguardista que a doença me atacou primeiro” – disse ele.
Acima escrevi que Copi é pouco conhecido no Brasil. Verdade, mas dou um desconto: ele não é inteiramente desconhecido. Alguns de seus cartuns apareceram na revista Status, ao lado de Jaguar e Quino, nos anos 1970. Peças foram encenadas no circuito alternativo de São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Salvador, e três delas – Eva Perón, Loretta Strong e A geladeira – enfeixadas em livro da editora 7Letras publicado em 2007, com tradução, respectivamente, de Giovana Soar, Ângela Leite Lopes e Maria Clara Ferrer. Em 2011, a Confraria do Vento editou Copi: transgressão e escrita transformista, de Renata Pimentel, excelente ensaio que é fruto de uma tese de doutorado na Universidade Federal de Pernambuco. E no romance As fantasias eletivas, de Carlos Henrique Schroeder, lançado em 2014, não é coincidência que o personagem travesti que detona a trama chame-se Copi.
L’Uruguayen, publicado em 1972, é seu primeiro relato; L’Internationale Argentine, de 1988, o último. Portanto este livro une as duas pontas da prosa do autor, que ainda compreende Le Bal des folles (1977), La Coté des rats (1979), La Vida es un Tango (1981), La Guerre des pédés (1982), além de duas coletâneas de contos: Un Lagouste pour deux (1978) e Virginia Woolf a encore frappé (1984).
O uruguaio é uma novela curta que na edição em espanhol traz a seguinte dedicatória: “Ao Uruguai, país onde passei os anos capitais da minha vida, a humilde homenagem deste livro, escrito em francês, mas pensado em uruguaio.” Trata-se de uma carta, endereçada ao Mestre, por alguém que assina Copi, num único e só parágrafo de ação vertiginosa, mas linguagem clara e concisa. O remetente não explica por que está naquele lugar tão estranho; apenas narra. Uma sequência veloz e desconcertante de fatos, a qual, não por acaso, lembra as histórias em quadrinhos. E tem-se um pedido inusitado – que soa como ordem: tudo o que vai sendo lido deve ser apagado com borracha ou riscado com caneta a cada linha que acaba. Ou seja, o que interessa é o que vai acontecer. Com Copi, ligamos o modo urgente de leitura.
Na proliferação de eventos desencadeada com o soterramento do Uruguai pela areia da praia, o tempo do relato foge ainda mais, levando o leitor nas asas de uma imaginação desvairada. Num trecho, o narrador mais parece se transformar em Harpo Marx, de cuja longa capa de chuva era capaz de sair qualquer coisa: “Vi, à minha esquerda, meio coberto de areia, um frango assado. Nem preciso dizer que não desperdicei a ocasião (passei seis dias sem comer) e corri até o mar para lavá-lo um pouco da areia. Devorei-o antes mesmo de sair do mar, entre as ondas.”
Depois do cataclisma, o país é pouco a pouco redesenhado no papel, passando como num passe de mágica a existir de novo. Seus habitantes voltam à vida como zumbis, recordam-se apenas das últimas ações que fizeram antes de morrer, ou das últimas palavras que disseram, e as repetem sem parar. Em meio ao caos, entra em cena – voando! – o papa argentino (lembremos que o livro é de 1972), que se revela sodomita e traficante de escravas sexuais. A urgência da narrativa atinge o máximo.
Em seu já famoso livro, César Aira aproveita O uruguaio para formular a teoria segundo a qual “a arte da narrativa decai na medida em que incorpora a explicação”. Copi, portanto, é um narrador altíssimo.
E engraçado até dizer chega. (Aqui cabe um parêntesis para afirmar que a boa literatura pode, sim, ser engraçada; os risos, ou mesmo as gargalhadas do leitor não a desmerecem. Pelo contrário.) A Internacional Argentina, a rigor, é um thriller político. Mas não só: é também uma comédia que desnuda o delírio das conspirações, deixando aquela pontinha de dúvida: “pero que las hay, las hay.”
Copi é um escritor velocista. De novo, o ritmo da narrativa é frenético, auxiliado pelo uso de diálogos ágeis e ácidos. Em alguns momentos quase nos sentimos dentro de uma screwball comedy hollywoodiana dos anos 1930. Como é possível que o embaixador argentino tenha um puma como animal de estimação, levado pela coleira para cima e para baixo, e que, num descuido, o bicho seja abatido a tiros numa cozinha por dois guarda-costas?
No mundo particular das novelas de Copi, quanto mais caricaturais ou improváveis o personagem e suas ações, mais críveis vão se tornando aos olhos do leitor. O vilão (se assim podemos chamá-lo) de A Internacional Argentina é Nicanor Sigampa, um “negro colossal” que pertence à aristocracia argentina. Milionário, vive em Paris aparentemente jogando dinheiro fora. Seu objetivo secreto é eleger o próximo presidente do país, e o candidato escolhido é o poeta-narrador da novela – que, mais uma vez, leva o nome Copi. Como fachada para o projeto político, Sigampa se dedica a financiar as atividades do grupo de compatriotas exilados, entre os quais artistas como Mafalda Malvinas – “a vanguarda da pintura com maçarico” –, Miguelito Pérez Perkins, o adido cultural da embaixada com “bigode de anchova”, e Raoula, a “pérfida” filha bastarda de Borges. (César Aira nota que o escritor deu à personagem seu próprio nome de batismo.)
Mais do que uma sátira à tradição da literatura de exílio, o livro é uma provocação, em forma de grande arte, feita por um exilado sem remédio: “Eu também era um personagem de tango e talvez um dos mais típicos, aquele que, mesmo permanecendo ‘ancorado em Paris’, vive com o coração em Buenos Aires.” A mesma Buenos Aires, terra de escritores, que, nas palavras do crítico Daniel Link, hoje consagra Copi como “um dos acontecimentos mais originais da literatura argentina dos últimos vinte anos”.
*Posfácio de O uruguaio.
Álvaro Costa e Silva é jornalista.