Traduzindo na fé
Por: Simone Campos20 de outubro de 2016
Três dias antes de me oferecerem a tradução de O livro das coisas estranhas, o mais recente romance de Michel Faber, eu havia comprado, na Waterstones da Princes Street de Edimburgo, outro romance dele que eu pretendia ler: The Crimson Petal and the White (Pétala escarlate, flor branca). Eu também já havia lido Under the Skin (Sob a pele) e vibrado com a estranha adaptação cinematográfica com Scarlett Johannson. Foi por isso que aproveitei o bafejo de internet disponível num aeroporto para responder que sim, mesmo sem verificar grandes detalhes sobre a nova história.
Cheguei em casa e lá estava ele, o volume físico, me esperando. Assim que o abri, caiu um papel no meu colo. Examinei-o e contei para o Twitter:
“Você sabe que o livro que você vai traduzir é promissor quando você o abre e cai um alfabeto alien no seu colo”, tuitei.
Uma pessoa sensata deveria começar a se apavorar neste momento, mas eu só fiz ficar mais empolgada. Adoro desafios. E este livro estaria cheio deles.
Em primeiro lugar, o que queria dizer este nome? Bem, dentro do livro homônimo, “O livro das coisas estranhas” é o apelido alienígena para a Bíblia.
O livro das coisas estranhas nos apresenta Peter Leigh, um missionário contratado para evangelizar alienígenas no distante planeta Oásis como funcionário de uma grande corporação. Esses alienígenas têm uma aparência peculiar e um alfabeto próprio, que aparece no livro, e algumas das letras são equivalentes a fonemas humanos; os aliens falam com “sotaque”, grafado nesse alfabeto. Eles pronunciam nesse alfabeto os fonemas s, t, e tch (este último, transformei em ch em português). Vários conceitos cristãos em inglês contêm esses fonemas: church, Jesus Christ, priest… e isso é bastante explorado no livro.
O missionário começa a reescrever a Bíblia para os aliens sem esses fonemas – o Salmo 23, por exemplo (“O Senhor é meu Pastor, e nada me faltará…”) – e pondera longamente sobre as diferentes traduções da Bíblia para o inglês.
Ainda por cima, a corporação que contratou esse missionário está fazendo grandes empreendimentos de engenharia nesse planeta, e há muito vocabulário técnico.
Por último, há pessoas de diferentes nacionalidades convivendo em Oásis, todas falando e gracejando em inglês (não necessariamente o mesmo inglês), o que exige um certo jogo de cintura da tradutora.
O que me ajudou nessa hora foi minha experiência pessoal. Já fui evangélica, e sou filha de engenheiro com arquiteta. Eu sabia quais versões da Bíblia em português poderiam ser equivalentes às citadas no livro, conhecia vários sinônimos para cada termo canônico e seus subentendidos, captei cada referência bíblica… e havia lido, por puro tédio, o lúdico livro-texto de engenharia Ao pé do muro aos 7 anos de idade.
Enquanto traduzia O livro das coisas estranhas, adquiri um carinho especial pela personagem Beatrice, a esposa de Peter, que ficou na Terra e se comunica com ele através de cartas disparadas espaço afora. Ela representa uma gloriosa exceção a personagens femininas que só existem como reflexo/mcguffin do narrador-autor homem. Não só Bea, mas também as personagens Grainger, a Enfermeira Flores, e a Adoradora de Jesus Número 5 são cheias de facetas e continuam nos assombrando depois da leitura.
Até demais.
Pouco depois de eu ter entregue a tradução, meu marido, Rodrigo, arrumou um novo emprego que exigia três meses de treinamento no Vale do Silício, na Califórnia. Eu fiquei para trás, cumprindo as matérias do doutorado. Meu doutorado (em Letras, sem bolsa) é na UERJ, que o governo do Estado do Rio tem deixado à míngua. Os primeiros a abandonar o barco foram os terceirizados, que não recebiam salário havia meses. Lixo espalhado, corredores sem lâmpadas, banheiros irrespiráveis, lanchonetes sem comida, e um hospital universitário em petição de miséria: parecia uma versão pocket do inferno enfrentado por Beatrice no livro, longe do marido. A sensação, como traduzi numa das cartas dela, de que “as coisas estão indo pro buraco numa velocidade assustadora”.
E literalmente enquanto Rodrigo voava para o norte (17-18 de março de 2016), as engrenagens do impeachment de Dilma Rousseff, que muitos, inclusive eu, acreditavam enferrujadas, se puseram rapidamente em movimento, azeitadas por um alegre mutirão verde-amarelo. Como sabemos, o processo se instaurou num passe de mágica, e o que parecia impossível tornou-se primeiro plausível, depois viável, e, por fim, particípio passado.
Mas aí, Rodrigo já estava aqui, de volta.
Não li quase nada sobre Michel Faber e sua vida antes de começar o projeto. Sou sempre aquela fã ruim que nem sabia que Hilda Hilst gostava de cachorros ou que Clarice Lispector tinha dois filhos até ser constrangedoramente tarde. Mas, depois de entregue a tradução d’O livro das coisas estranhas, tive uma conversa com o colega Caetano Galindo que me abriu os olhos. Eva, a esposa de Michel Faber, adoeceu e faleceu enquanto este romance era escrito. Ao saber disso, a história já cheia de significado para mim se tornou ainda mais forte.