Sobre Ben Lerner

por Kelvin Falcão Klein
19 de setembro de 2018


Existe uma linha que liga os dois romances de Ben Lerner, e essa linha é o trajeto da automodelagem, da autoficção do autor/narrador. Estação Atocha, lançado originalmente em 2011 (Leaving the Atocha Station), conta a história de Adam Gordon, jovem poeta estadunidense que ganha uma bolsa de estudos e vai morar em Madri, na Espanha, durante um ano. 10:04, por sua vez, o segundo romance de Lerner, de 2014, conta a história de um sujeito sem nome de 33 anos, morador de Nova York, poeta e escritor,  que descobre sofrer de uma doença no coração.

Ambos os romances são narrados em primeira pessoa, compartilhando essa proximidade por vezes desconfortável (mas sempre enigmática e, ao mesmo tempo, estimulante) de um sujeito que, ao refletir sobre suas manias, angústias e conquistas, dá conta de um pensamento geral sobre o fazer literário e a convivência social. Mas há uma sutil, ainda que nítida, mudança na passagem de Atocha para 10:04: no primeiro romance, os verbos estão frequentemente na primeira pessoa – fiz, acordei, escrevi, caminhei; no segundo romance, contudo, há uma transformação decisiva – o narrador por vezes se distancia ironicamente daquilo que faz, como se construísse uma distância (ficcional, farsesca) entre o ato e a escrita do ato.

Em 10:04, muitas vezes o narrador alcança a si próprio como se fosse um outro, em terceira pessoa, uma impressão que frequentemente ganha tons cômicos, na medida em que é sempre evidente que ele está falando de si (e, em uma camada suplementar de sentido e de equívoco, falando de Ben Lerner, pessoa física). Chegando a um encontro com uma mulher recém-conhecida, e comportando-se de forma inabilidosa, o narrador de 10:04 comenta: “Ela riu como se aquilo fosse de fato encantador e disse: ‘você fala como no seu romance’. A ansiedade dissipou-se, mas em tédio. Ele derramou um pouco de café ao levá-lo aos lábios”. A frase é ao mesmo tempo bem-humorada e reveladora de um procedimento literário: “você fala como no seu romance”, ou seja, sua performance na “vida real” é justamente aquilo que se espera depois do contato com a performance “ficcional”, e já é impossível determinar qual surgiu primeiro ou diferenciar a fonte do eco.

Existe aí um envio intertextual muito sutil e, ao mesmo tempo, condizente com as referências e as vivências apresentadas no romance anterior, Estação Atocha. O narrador de 10:04 coloca como elemento determinante de sua história a existência de um romance prévio (que compartilha uma série de características com Atocha), um romance escrito por ele e lido por várias pessoas que surgem em seu caminho em 10:04.

O procedimento é tão velho quanto o romance – foi utilizado por Cervantes na segunda parte do Quixote. O cavaleiro da triste figura, no segundo volume da obra, ao retomar suas viagens, encontra pessoas que leram o primeiro livro (Cervantes publica a primeira parte do Quixote em 1605 e se vê obrigado a escrever uma segunda parte – publicada em 1615 – depois que um sujeito chamado Avellaneda publica uma continuação espúria ou “não-autorizada”, querendo se aproveitar do sucesso da primeira parte).

A linha autoficcional que une e costura os dois romances de Ben Lerner, portanto, pode ser lançada também em direção ao passado. A tradição literária é reconfigurada a partir de uma dupla de narrativas que só aparentemente é “autocentrada”. Quase podemos ouvir um camponês da Mancha dizer ao Quixote enquanto ele passa discursando: “você fala como no seu romance”.

*Kelvin Falcão Klein é crítico literário e professor de literatura na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.

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