Sobre a impossibilidade em A instrução da noite

Por: Maurício de Almeida
29 de fevereiro de 2016


a instrucao da noite“Quando o Sr. de Bourbon tomou Roma, o porta-estandarte encarregado da guarda do subúrbio de São Pedro foi tomado de tal pavor à primeira alerta que, passando através de um buraco no muro em ruínas, saiu da cidade carregando seu estandarte e marchou ao encontro do inimigo convencido de que se dirigia para o interior da praça-forte.”
Do medo, Montaigne

1. O medo enquanto impossibilidade

Há alguns anos, quando escrevi meu primeiro livro (Beijando dentes, livro vencedor do Prêmio Sesc de literatura em 2007), estava interessado na temática relativa à impossibilidade de comunicação entre as pessoas. Para tanto, o conjunto de contos que o compõe tenciona simbolizar o esgarçamento do diálogo, transitando progressivamente entre conversações tumultuadas, monólogos simultâneos até chegarem à ausência total de comunicação, como se o estabelecimento de relações fosse tão artificial e violento quanto a construção de paredes.

Após a publicação, enquanto eu estava às voltas com a redação de outros textos que tratavam também sobre a impossibilidade (correspondendo ao axioma de que um escritor versa sempre sobre um mesmo tema), me coloquei um desafio: diferentemente do livro anterior, no qual me debruçava sobre certa consequência da impossibilidade, queria escrever algo que tratasse a impossibilidade antes enquanto causa.

No processo de elaboração desse tema, uma imagem simples e eficaz se impôs tão implacável quanto o que propunha: uma porta fechada. Haveria impossibilidade maior do que uma porta fechada que não se permite ser aberta? O que, além da própria vontade de impossibilidade, manteria uma porta fechada? Embora a imagem fosse funcional e simbólica, alguma coisa anterior deveria ser a justa explicação à incapacidade do personagem de simplesmente girar a chave e sair. Que sentimento realizaria a impossibilidade com a qual se defronta o personagem e com o qual se debate senão o medo?

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A partir desses elementos e dessas conclusões, estabeleci o enredo: um personagem que, preso à casa onde mora com a mãe apática e a esposa indiferente, estabelece um diálogo com a irmã para relatar o recente e tumultuado encontro que teve com o pai, com quem não tinha contato há anos. Esse diálogo (que, como se verá, assume a forma de monólogo) não poderia ter outro tom senão um misto de admiração e inveja em relação à irmã, posto que ela efetivou uma fuga impossível ao protagonista, que nada mais é do que ir embora da casa.

Os elementos que compõem o enredo são destinados a explorar por diferentes meios aquilo que faz da fuga um evento impossível ao narrador: o medo. Acuado e desacreditado, ao protagonista todos os outros personagens são antes cobranças, demandas e dependências que reiteram a sensação de incapacidade e aprofundam o medo. Além disso, por não assumir que seu medo destina-se apenas à partida (ou, como ele fatal e finalmente propõe, à liberdade), esse sentimento é amplificado a dimensões insuportáveis devido à tensão constante de que algo imprevisível acontecerá e ao qual demolições, discussões e descaminhos que pontuam o enredo são apenas prenúncios.

2. Alcoólica, Baldio & Noturno

No ensaio sobre o medo, Montaigne sugere que esse “estranho sentimento” resulta em duas reações possíveis: a paralisia mortal ou o desespero que nos atira à causa do medo. E colhe da história situações exemplares a essa tese, desde a paralisia mortal do Imperador Teófilo quando da invasão e massacre de sua cidade natal até o porta-estandarte que vigiava São Pedro e que serve de epígrafe ao texto. Interessa notar que a estrutura de A instrução da noite também corresponde a esses estados no protagonista. Estabeleci uma sequência ao desenrolar do medo, assumindo as reações de paralisia e desvario não como possibilidades independentes, mas como reações consequentes.

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Dividido em três partes (cujos títulos nomeiam este trecho) arrisco que dois terços do livro são destinados à paralisia, enquanto o terço final segue o trânsito desgovernado àquilo que simboliza a impossibilidade – no caso, a porta da casa.

A razão dessa divisão desigual decorre de meu entendimento que o desvario é um momento limite do medo, quando a iminência parece contínua e, portanto, insuportável. E, ainda que travestida de coragem, a reação (aparentemente contraditória) que nos atira àquilo que se desconfia ser a causa do medo é antes de tudo uma covardia, pois, sendo a razão do medo desconhecida ou inominada, pretende a própria destruição como meio de extinguir o sentimento.

Dedicado à realização da impossibilidade devido ao medo, o protagonista não consegue (não quer?) abrir a porta trancada, mesmo convencido de que o tal evento catastrófico (porque inominável) está em vias de acontecer. Assim, A instrução da noite sugere que o fracasso tende a ser muito mais uma escolha que um evento externo ou desígnio ao qual se está fadado. E talvez o protagonista se empenhe em justificar sua incapacidade por não confrontar o medo que implica superá-la, e, ao mesmo tempo, por não confrontar o medo, talvez o protagonista reafirme sua incapacidade.

Maurício de Almeida é escritor e antropólogo. Foi vencedor do Prêmio Sesc de literatura 2007 com o livro de contos Beijando dentes e lança em fevereiro, pela Rocco, A instrução da noite, seu primeiro romance.

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