Roma brasileira
Por Samir Machado de Machado19 de janeiro de 2018
É um causo anedótico recorrente entre autores de ficção fantástica brasileira: quando do lançamento de O Centésimo em Roma, em 2010, o autor Max Mallmann foi questionado por um jornalista se seu livro poderia ser considerado “literatura brasileira” por ser ambientado na Roma Antiga. Ao que Mallmann, incrédulo, respondeu: “ora, se eu sou brasileiro, é literatura brasileira.”
A pergunta diz menos sobre o livro e muito sobre o cenário literário nacional: ela nunca teria sido feita à um autor estrangeiro, por exemplo. Ela certamente não foi feita para o britânico Conn Iggulden, que escreveu livros cujas ambientações vão de Roma à Mongólia de Genghis Khan. Ou à francesa Marguerite Yourcenar, cujo Memórias de Adriano é considerado um clássico. Alguém poderia argumentar que tanto Inglaterra e França teriam mais “direito” a abordar o tema por serem países que já foram territórios do Império Romano, mas nesse sentido Portugal também — cenário explorado pelo português Mário de Carvalho em seu excelente romance histórico Um Deus passeando pela brisa da tarde, ambientado na Lusitânia.
“Há hoje, no mundo todo, é certo, porém mais agudamente no Brasil, um apego a um certo realismo exacerbado, como se você leitor, quisesse a garantia de que cada palavra impressa é verdade”, diz Mallmann no posfácio ao segundo livro. “Costumo chamar essa distorção hipertrófica do realismo de ‘verdadismo’. E culpo a tradição verdadista por manter a literatura brasileira desconfiadamente distante do realismo fantástico, da ficção científica e do romance histórico”.
Max Mallmann nasceu em Porto Alegre em 1968. Formado em Direito, orgulhava-se de nunca ter exercido a profissão. Integrou, por quinze anos, o time de redatores do seriado A Grande Família, e como escritor publicou diversos livros da assim chamada “literatura de gênero”, oscilando entre realismo mágico, fantasia e ficção científica. Faleceu em 2016 aos 48 anos. Suas duas últimas obras, O Centésimo em Roma (2010) e As Mil Mortes de César (2014), foram um díptico ambientado na Roma do século I, tendo como protagonista o centurião Publius Desiderius Dolens, “o carniceiro de Bonna”, um violento e ambicioso veterano das guerras contra bárbaros germânicos, sempre em busca de ascensão social.
O primeiro livro, O Centésimo em Roma, é ambientado no ano 68 d.C. (o último do
reinado de Nero) e é, em essência, uma trama policial. Encarregado de chefiar a guarda urbaniciana de Roma, Dolens deve investigar o assassinato de um senador, ao que tudo indica, cometida por fanáticos religiosos — uma nova seita que cultua um certo judeu crucificado trinta anos antes. Dolens é obrigado a aceitar um parceiro em sua investigação: Quintus Trebelius Nepos, o culto filho do senador assassinado. Como em toda boa trama policial, a investigação chega aos alicerces da cidade, e do governo do imperador Nero.
É quando Dolens e Nepos andam por becos, casas e templos de Roma, que a sensação de verossimilhança e realismo lembra as andanças por um cenário de jogo de mundo aberto, como Assassin’s Creed. Tendo visitado a cidade e explorado suas ruas durante a produção do livro, Mallmann reconstitui a Roma dos tempos de Nero nos mínimos detalhes, tanto geográficos quanto de costumes, em hierarquias, regras sociais e sexuais — Nepos, por exemplo, é apaixonado por seu escravo ruivo, algo para o qual o próprio Dolens, como bom romano, dá de ombros lembrando que ele próprio já traçara um rapaz ou outro na falta de mulheres. E a tudo isso, soma-se um detalhe crucial: o senso de humor de Mallman para o absurdo e o grotesco da violência cotidiana, algo ao mesmo tempo muito brasileiro e também muito romano.
Já As Mil Mortes de César se passa um ano após o primeiro livro, entre 69 e 70 d.C., no período conhecido como “o ano dos quatro imperadores”, durante a guerra civil — uma das muitas na história de Roma — após a morte do imperador Galba, que havia sucedido Nero. Sabemos logo no começo que Desiderius Dolens escolheu o lado derrotado, e precisa percorrer um longo caminho para voltar a cair nas graças de Roma, adaptando-se conforme o governo muda numa dança das cadeiras entre imperadores e generais rivais.
Se o primeiro livro era como um longa-metragem, o segundo volume é como maratonar uma temporada, onde se aproveita a estrutura episódica para expandir a caracterização de alguns personagens. Dividido em diversos episódios sequenciais, algumas de tom bastante distinto dos demais, Mallmann cria uma colagem de deliciosas referências pop que vão de Sérgio Leone de onde toma emprestado a estrutura do capítulo Por um punhado de denários, passando por Lovecraft em O Chamado de Catulo, onde pequenos tremores de terra em Roma são associados à tentativa de traduzir do grego um certo Nekronomaeikon, e chegando a Shakespeare em O leite da adversidade, onde uma tragédia à la Romeu e Julieta precisa ser desvendada de trás-para-frente. Ao final, Mallmann expõe num posfácio não só suas referências como explica a própria história de origem do conceito de easter eggs.
O que nos leva de volta à pergunta do jornalista: o que há de brasileiro numa história ambientada na Roma Antiga? Tudo. E no momento político em que vivemos, mais do que nunca. Não somente nossa própria língua descende de uma fusão entre o latim vulgar e o celta galaico do norte de Portugal, como somos herdeiros de padrões culturais e sociais estabelecidos pelos antigos romanos. Que, em tempos de eleições, impressionavam seus eleitores vestindo togas especialmente branqueadas — ou em latim, candidatus.
O império romano — cujo nome oficial, Senatus PopulusQue Romanum, ou S.P.Q.R, também título de um excelente livro da pesquisadora inglesa Mary Beard — ecoa na nossa vida até hoje. Semelhanças com questões políticas atuais não são mera coincidência: a sociedade é movida pelas mesmas eternas questões e conflitos. Veja-se o caso de Cícero, que em 63 a.C., denunciou a conspiração de Catilina para derrubar o governo com um famoso discurso, as Catilinárias, iniciado pela frase “até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência”. Não é coincidência que “Operação Catilinárias” tenha sido o nome escolhido pela Polícia Federal brasileira para a ação que prendeu Eduardo Cunha, o presidente da Câmara dos Deputados que derrubou uma presidenta.
Há muito da mentalidade romana na realidade brasileira, um pragmatismo conformado que tenta sobreviver e navegar numa sociedade em eterno conflito consigo próprio. Benjamin Moser observava, no seu Autoimperialismo que ao contrário de outras nações imperialistas como os EUA, onde as ameaças vinham “de fora”, a ameaça no Brasil é sempre “interna”, onde o discurso de guerra é sempre dirigido não contra o estrangeiro, mas contra o próprio país. “O Brasil invadia-se a si mesmo”. Nisso reside o apelo e o mérito dos livros romanos de Max Mallmann: o de perceber, na sucessão de absurdos grotescos, escândalos políticos e violência pública, o tanto de Roma Antiga que temos entranhado na mentalidade nacional.
Não acho exagero dizer que, se o Brasil tivesse uma indústria cultural tão forte quanto a norte-americana, as aventuras romanas de Max Mallmann já teriam sido adaptadas para o cinema há muito tempo.