Quase um século depois, muitas de nós ainda somos Lili Elbe

Depois de tanto tempo, o que mudou?
24 de julho de 2019


Medo, receio, dúvida, inquietação, insegurança e hesitação são algumas das sensações que sentimos nas primeiras vezes em que a vontade, o desejo e a necessidade de existir enquanto outra pessoa nos levaram a experimentar gênero de maneiras até então não experimentadas.

Ser trans é, sobretudo, uma experiência identitária. É olhar para si e para as outras pessoas e sentir algo faltando, um misto de mal-estar com insatisfação. Uma sensação meio anacrônica, meio onírica: e se eu fosse outra pessoa, em outro tempo e em outro espaço? E se eu pudesse sonhar com outra vida? Com outras formas de viver e conviver?

“E se eu fosse…”

Cena do filme A garota dinamarquesa em que a protagonista experimenta pela 1ª vez um vestido

A divagação, no entanto, dura muito pouco em uma sociedade na qual o ser é predestinado; Quando nascemos, nossas vidas já são definidas por outros e a profecia descortina tal qual em uma peça cujo roteiro já foi escrito e os atores e atrizes performam seus papéis com o máximo esmero possível — afinal, é o que se espera de atores e atrizes de bem.

Se performamos os papéis destinados a nós adequadamente, estamos seguras; se ousamos cruzar a linha imaginária criada pela cisgeneridade, então toda a força das normas sociais que orientam o gênero é empregada contra nós. “Isso não é coisa de homem”, “este não é brinquedo de mulher”, “você tem de se dar ao respeito”, “vire homem!” — frases comuns que ouvimos quando crianças e continuamos ouvindo ainda hoje. Frases que encerram as possibilidades de vida e conformam os sujeitos a uma só maneira de viver. Enquanto sociedade, lutamos exaustivamente pela liberdade, mas, para nós, pessoas trans, “liberdade” é um conceito pouco visto, muito menos conquistado.

Lili Elbe antes e depois da transição de gênero

Histórias como a de Lili Elbe, contada em A garota dinamarquesa, livro de David Ebershoff e depois adaptada para o cinema, nos fazem lembrar que, embora tenha se passado quase um século, continuam mais atuais do que nunca. Ainda somos Lili: almejamos outra vida, com outras formas de ser, de se expressar, de sonhar e de amar. Muitas de nós ainda não descobrimos que podemos ser, e muitas de nós ainda estamos paralisadas pelo medo de ser. Medo oriundo do preconceito da sociedade e da família dita “tradicional”, pois embora estejamos em 2019, nossas vidas ainda não nos pertencem. Seguimos sendo uma sociedade transfóbica, especialmente no Brasil, país onde mais pessoas travestis e transexuais são assassinadas.

Ainda somos submetidas a diversas violências: violência psicológica; violência educacional — quando somos expulsas simbolicamente das escolas; violência econômica — quando nos é negado o direito de ter um emprego digno, nos empurrando ao trabalho sexual; violência afetivo-familiar — quando nossa família nos expulsa de casa, nos privando do amor supostamente incondicional o qual uma família deveria prover; violência física e, mesmo após a morte, a violência simbólico-identitária — quando, mesmo após mortas, nos enterram pela segunda vez ao conferir-nos um nome e uma aparência que não nos representam.

O livro de Ebershoff e o filme de Tom Hooper resgatam nossa vontade de sonhar, nossa necessidade de ser. O tempo que nos separa da história de Lili parece inexistir dada a emergência de se falar sobre questões trans (ainda) em nossa época. Talvez precisamente por causa dessa atualidade, a discussão sobre nós seja, mais do que nunca, imperativa. Afinal, estamos vivemos em uma época perigosa, talvez similar àquela de Elbe, na qual a liberdade de ser quem quisermos está ameaçada em prol de um projeto de sociedade que prefere nos matar a nos ver livres.

Resta saber se caminharemos para 2020 ou 1920.

Hailey Kaas é transfeminista, tradutora e escritora. Foi uma das responsáveis pela introdução do transfeminismo no Brasil através de um dos primeiros blogues e textos dedicados ao assunto. Atualmente participa de diversas iniciativas com o objetivo de divulgar o transfeminismo no Brasil. Sua pesquisa circula entre as áreas de Linguística, Estudos de Gênero, (Trans)feminismo e Teoria Queer.

TAGS: A garota dinamarquesa, David Ebershoff, Hailey Kaas, História, Lili Elbe, mulher transgênero, trans, transexualidade,

Comentários sobre "Quase um século depois, muitas de nós ainda somos Lili Elbe"

  1. Em tempo de Liberdade e Liberalismo o nosso maior foco Tem que ser Eu. Seguir exemplos e modelos depende muito do que realmente é bom para mim.
    Todo contexto do outro é do outro.
    Cada um de nós temos nossos desertos de busca e afirmações que na realidade são individuais.
    Trabalho muito com LGBT por questões de prevenção que não deveria ser limitada a Aids somente.
    Existem outros riscos de morte hoje.
    Precisamos melhorar nossa mente e um pouco dessa culpa está nos Livros, Revistas e Jornais por não informar com clareza certas questões que poderiam abrir uma reflexão e debate em nós mesmos.
    Hoje com toda plataforma digital ao nosso alcance carecemos de Informação.
    Dúvidas? Sempre a teremos.
    Mais precisamos viver e deixar os nossos fantasmas um pouco de lado.
    Viver Amar para valer a pena.
    Somos diferentes para sonhos iguais.
    Beijo grande na sua liberdade de escolha.
    Geraldo Paiva

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