PARA QUE VOCÊ NÃO SE PERCA NO LABIRINTO DE PATRICK MODIANO
por Pedro Vasquez22 de dezembro de 2014
Parisiense, Jean Patrick Modiano nasceu em uma maternidade de Boulogne-Billancourt (pequena comuna da região administrativa de Île-de-France, a mesma à qual pertence Paris) em 30 de julho de 1945, sendo filho de Luisa Colpeyn e Albert Rodolphe Modiano. Sua mãe era belga, da região flamenga, correspondente à região de Flandres (a parte norte do país, em oposição à Valônia, situada ao sul). Ao contrário da informação errônea de que seu pai seria “um judeu italiano”, ele era nascido em Paris, embora fosse efetivamente de ascendência judaica e toscana. Contudo, não era praticante, sempre escondeu suas origens (no tempo da Guerra por razões óbvias), matriculou ambos os filhos em internatos católicos, mandando, inclusive, batizá-los. Certamente não por excesso de fé, já que – mantendo o descaso pelas crianças que lhe era característico –nem mesmo compareceu ao batizado, celebrado no período de dois anos (1949-1950) que eles passaram em um colégio interno de Biarritz.
Patrick e Rudy (dois anos mais novo) regressam a Paris no ano seguinte, mas não ao convívio familiar, pois seus pais ou os mantinham em colégios internos ou os confiavam aos cuidados de amigos ou de guardadores, de tal forma que o futuro escritor sente-se então como um animal que passa de mão em mão segundo a conveniência dos donos. Sentimento que ele resume na terrível frase extraída de seu relato confessional, Un pedigree: “Sou um cachorro que finge ter um pedigree”. Em janeiro de 1957, Rudy morre de leucemia, aos dez anos de idade. O choque da morte de Rudy foi determinante para o irmão, tanto para o futuro imediato quanto para sua trajetória como escritor. Isso porque Modiano se viu completamente sozinho no mundo, já que a mãe o ignorava completamente e seu pai fazia tudo para afastá-lo, mantendo-o sempre em colégios internos e tentando inscrevê-lo à revelia no serviço militar. Após esse episódio, assim que atingiu a maioridade legal em 1966, Patrick Modiano rompeu definitivamente relações com o pai, que veio a falecer na Suíça, em 1977, em “circunstâncias não esclarecidas”, segundo o romancista e ensaísta Pierre Assouline. O que não é de surpreender, quando se sabe que Albert Modiano vivia sempre envolvido em negócios escusos ou rocambolescos, de tal forma que o próprio filho suspeitava de seu envolvimento com os colaboracionistas, utilizando-o como inspiração para alguns dos personagens de moral dúbia de seus livros.
A estreia literária de Patrick Modiano se deu em 1968, com Place de l’Étoile, em um momento em que ninguém na França falava a respeito do período da Ocupação. Apesar de causar comoção e desconforto, o romance foi contemplado com o prêmio Roger Nimier, pela sua habilidade em tratar temas pesados com leveza, como o Estatuto dos Judeus, as delações ou o episódio das prisões em massa ocorrido no Velódromo de Inverno. Este primeiro prêmio inaugurou assim uma série contínua de premiações que atingiu agora a culminância com o Nobel, depois de ter passado pelo Goncourt (conforme já dito), em 1978, e pelo Prêmio Mundial Cino del Duca, outorgado pelo Instituto de França em 2010.
Modiano considera que só começou a viver a própria vida quando recebeu a notícia da aceitação do primeiro livro pela Gallimard. Significativamente, assim termina seu único livro verdadeiramente autobiográfico, Un pedigree: “Aquela noite eu me senti leve pela primeira vez na vida. A ameaça que pesava sobre mim ao longo de todos aqueles anos, me forçando a viver sempre em estado de alerta, havia se dissipado no ar de Paris. Eu havia conseguido escapar antes que a ponte apodrecida desabasse. Já não era sem tempo.”
As feridas abertas pela Ocupação ainda perturbam a vida política e social francesa até hoje, decorrido mais de meio século, e podem ser comparadas àquelas deixadas no Brasil pelo período da ditadura militar instituída em 1964. Isso porque nosso país também foi dividido por este período de exceção em dois campos opostos: o daqueles favoráveis aos militares e o daqueles que os combateram, inclusive pegando em armas. Entre os dois extremos, em ambos os países, a massa cinzenta e sem nome que se acomodou muito bem à situação, sem grandes preocupações éticas ou morais, desde que pudesse auferir algum tipo de benefício.
O crítico literário Gilles Lapouge comentou: “a infância de Modiano foi tão perturbadora que ainda hoje, 69 anos depois, este homem se debruça sobre o que antecedeu ao seu nascimento como nos debruçamos sobre um precipício infinito, sobre esses anos da Ocupação que ele não vivenciou, mas dos quais é fruto. ‘Muitos amigos que não conheci’, escreveu ele um dia, ‘desapareceram em 1945, ano do meu nascimento’. E também: ‘Tenho a impressão de ser uma planta nascida do estrume da Ocupação.’” De fato não há exagero em afirmar que a infância de Modiano foi infeliz.
Apesar de ausente e indiferente, sua mãe viria a lhe proporcionar sorte ao apresentá-lo a Raymond Queneau, autor do clássico moderno Zazie dans le métro. Queneau acabou se transformando em uma figura paterna para Modiano, que costumava almoçar aos sábados em sua casa, era ajudado por ele nos deveres de matemática, e a ele submeteu os originais de seu primeiro livro, Place de l’Étoile. Foi, inclusive, Queneau, que trabalhava como editor na prestigiosa Gallimard, o responsável pela estreia literária de Modiano. A aceitação imediata de seu livro ocorreu de forma natural e quase que predestinada, pois conforme muito bem lembrou o editor do Magazine Littéraire, Maurice Szafran; “Desde a primeira frase de La Place de l’Étoile, ele trazia dentro de si essa obra que o Nobel veio consagrar. Isso nos causou imenso prazer, apesar do fato de que não precisávamos deste reconhecimento para saber que Modiano era um imenso escritor, refugiado em sua vida de bairro, passando rente aos muros com sua alta silhueta, mas, ainda assim, tão próximo de nós.”
NOS LIVROS TODA CIDADE É PARIS
Seria descabido considerar Patrick Modiano um Albert Camus esperançoso e compassivo? Possivelmente não. Talvez seja essa até uma das chaves para a compreensão de sua obra, impregnada das mesmas angústias, das mesmas dúvidas e do mesmo desalento camusiano, com a vantagem de ser ambientada em um cenário mais atraente: Paris. “Paris, toujours Paris”, como diriam os franceses, imbuídos da convicção de que Paris é para o mundo moderno aquilo que Roma foi para a antiguidade: a cidade síntese. Ao longo dos séculos muitas cidades conheceram apogeu e decadência, muitas entraram e saíram de moda, espichando e retorcendo arranha-céus cada vez mais altos sem que suas torres de babel conseguissem projetar sombra sobre “a cidade luz”. Mas, se a topografia da obra de Modiano é toda parisiense, sua Paris não é nem literária nem turística. É justo o oposto, nela prevalecendo logradouros prosaicos, ruas e ruelas obscuras das quais apenas Modiano conhece os nomes de cor e que, até a presente consagração do prêmio Nobel, não haviam atraído a atenção de nenhum turista e nenhum diretor americano de cinema.
Sua obra, traduzida em trinta e seis idiomas, desperta interesse em diversos países, de tal forma que até mesmo nos Estados Unidos, onde a literatura estrangeira tradicionalmente não dispõe de muito espaço, dezesseis teses de doutorado já foram escritas sobre seus livros, o que é bastante expressivo em se tratando de um autor contemporâneo ainda vivo. Alice Kaplan, diretora do Departamento de Francês da prestigiosa Yale University, assevera que hoje “compreendemos o esquecimento graças a Modiano, da mesma forma que compreendemos o ciúme graças a Stendhal”. Responsável por um curso consagrado à obra de Modiano, Kaplan estabelece um paralelo entre sua prosa e os quadros de Edward Hopper, na medida em que em ambos os casos “encontramos essa ideia de que alguma coisa horrível aconteceu em algum lugar, e persiste no ar uma sensação de crime e ausência”.
DA ESCURIDÃO DAS RUAS À PENUMBRA DAS SALAS DE CINEMA
A profunda a relação de Patrick Modiano com o cinema não é casual. Sua mãe, “uma bela jovem de coração seco”, era atriz e existe na narrativa de Modiano uma fluidez, um deslocamento coerente no espaço, um inteligente encadear de cenas, comparáveis à eficiência de um filme bem roteirizado e irretocavelmente montado. O cinema – arte da luz apresentada em um espaço de sombra – foi, por sinal, a atração primeira de Modiano. Mas, para a felicidade de seus leitores a timidez o afastou dos sets de filmagem – sempre caóticos e excessivamente movimentados – direcionando-o para o refúgio silencioso do escritor. Deste refúgio seguro e reflexivo ele teve condições de atuar como roteirista, assinando entre outros o roteiro do antológico Lacombe Lucien (1974), escrito em parceria com o diretor Louis Malle, que acabou se mudando para os Estados Unidos depois da intensa polêmica suscitada pelo filme, que rachou a opinião pública francesa.
Contudo, caso decidisse optar pela direção, Modiano não seria Malle e muito menos Godard. Seria certamente Truffaut, construindo com idênticas contenção, elegância e eficácia, narrativas repletas de sedutora nostalgia, aparentemente saudosistas mas que, em verdade, focalizam questões contemporâneas. E, caso fosse um personagem cinematográfico, Modiano seria sem dúvida Antoine Doinel, o alter ego de Truffaut, sempre interpretado por Jean-Pierre Léaud. Um Antoine Doinel mais discreto e menos trapalhão, porém igualmente sedutor e impregnado da mesma melancolia e do irrefreável desejo de entender por que aquilo ocorreu da forma que ocorreu, impossibilitando assim o advento daquilo que deveria ter sido.
Em 1975, Patrick Modiano escreveu o roteiro de Un innocent, para a série de televisão Madame le juge, o que lhe proporciona uma oportunidade para cauterizar algumas feridas antigas, já que sua mãe foi escalada para o elenco liderado pela grande dama do cinema francês, Simone Signoret. Ele escreveu ainda outros roteiros originais – como os de Fils de Cascogne (1995), de Pascal Aubier, e de Bon Voyage (2002), de Jean-Paul Rappeneau –, e teve ainda cinco de seus livros adaptados para o cinema. Aventurando-se também diante das câmaras em Généalogies d’un crime (1997), de Raoul Ruiz, estrelado por Michel Piccoli e Catherine Deneuve.
Com Deneuve, aliás, ele havia escrito a quatro mãos no ano anterior o livro Elle s’appelait Françoise, sobre a irmã mais velha de Deneuve, Françoise Dorleac, morta prematuramente aos 25 anos de idade em um acidente automobilístico.
O conhecimento de cinema de Patrick Modiano é notório, de tal forma que ele chegou a ser convidado para integrar o júri do badalado Festival de Cannes, em 2000, ano em que a Palma de Ouro foi concedida a Dancer in the Dark de Lars von Trier, lançado no Brasil com o título de “Dançando no escuro”.
O PAPEL DO ESCRITOR SEGUNDO MODIANO
“Sempre acreditei que o poeta e o romancista conferiam mistério aos seres que parecem estar submersos pela vida cotidiana e às coisas aparentemente banais – isso, pelo fato de observá-los com atenção contínua e de maneira quase que hipnótica. Sob seu olhar a vida corrente acaba se revestindo de mistério e adquirindo uma espécie de fosforescência que não tinha à primeira vista, mas estava escondida em profundidade. É o papel do poeta e do romancista, assim como do pintor, o de desvelar esse mistério que subsiste no fundo de cada pessoa. Penso em meu primo distante, o pintor Amadeo Modigliani, cujas telas mais comoventes são aquelas para as quais ele escolheu como modelos pessoas anônimas, crianças e meninas de rua, criadas, camponeses e jovens aprendizes. Ele os pintou com um traço agudo que evoca a grande tradição toscana, a de Botticelli e dos pintores sienenses do Quattrocento. Ele lhes concedeu também – ou melhor, ele desvelou – toda a graça e a nobreza que residia neles, sob a aparência humilde. O trabalho do romancista deve seguir essa direção. Sua imaginação, longe de deformar a realidade, deve penetrá-la profundamente para revelar essa realidade a ela mesma, com a força dos infravermelhos e dos ultravioletas, de modo a detectar o que se esconde atrás das aparências. E não estarei longe de acreditar que, no melhor dos casos, o romancista é uma espécie de vidente ou mesmo de visionário. E também um sismógrafo, capaz de registrar os movimentos mais imperceptíveis.”
[Trecho extraído do discurso de recepção do Prêmio Nobel de Literatura, preferido na tarde de domingo, 7 de dezembro de 2014, na Academia Sueca, em Estocolmo.]
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Pedro Afonso Vasquez é editor de não ficção da Editora Rocco. Admirador de longa data da obra de Patrick Modiano, ilustrou com suas fotografias as capas das primeiras edições brasileiras dos livros Dora Bruder e Do mais longe do esquecimento, ambos publicados pela Rocco.