Os fantasmas à solta

por Jorge H. Wolff
11 de julho de 2017


Traduzir literatura, no meu caso, é como tocar piano ou, melhor dizendo, é como alguém não músico que ama música tocando um instrumento a pleno, e não qualquer instrumento mas o piano. Trata-se de um método particular que foi se realizando a cada texto traduzido do castelhano, em que a etapa de virtuose do piano (totalmente ilusória, por suposto) se encerra junto com a primeira versão desse texto, que inclui apenas pesquisas iniciais e palavras, expressões ou sentenças que ficam entre colchetes; a partir daí esqueço do teclado enquanto cravo ou clavier para investigar frase a frase, palavra a palavra, som a som.

Pois bem, em vinte anos de pianísticas versões brasileiras da língua de Jorge Borges e Daniel Baremboim, Os fantasmas é o mais belo livro que já traduzi: o de prosa mais poética sem fazer apelo à “prosa poética”; o mais verdadeiro, e shakespeariano, ao colocar em relação os humanos e seus espectros; o mais tocante socialmente ao pôr em contato cidadãos muito pobres e muito ricos; o mais fabuloso ao fazer com que uma personagem leia e decida viver ela própria a fábula de certo escritor inglês; o mais fulgurante por incluir numa novelita em tom pueril uma reflexão sobre o espaço (a construção de um moderno edifício serve à pergunta “o que é o fora” e “o que é o dentro”) e sobre o tempo (e o que significa, na cultura ocidental, o dia 31 de dezembro – reflexão que teria uma versão suplementar em El náufrago, de 2011).

Por essas razões, meu sonho secreto é traduzir ao piano toda a obra de César Aira. Mas me faltariam vidas. Por isso e para isso conto com amigos com quem vamos constituindo uma equipe de tradução coletiva e os seus frutos não demoram a aparecer (aliás, já estão aparecendo…).

Esta novela, ainda das primeiras épocas do autor, que começa a escrever e inscrever a sua particular fusão de prosa ensaística com plástica poesia já nos anos 60 mas a publicar só nos 80, é portanto uma fábula hiper-realista sobre o amor, a família e a espectralidade, além de um sorriso largo à família chilena que a protagoniza e, em especial, à sua porção adolescente, que concentra as atenções de forma gradual e inescapável à medida que a estória anda.

Ocorre que o tempo da narrativa, como disse acima, está concentrado em um único dia, o famoso 31 de dezembro. Há, portanto, desde o início um clima de despedida e de inauguração: despedida e inauguração do ano e do prédio que os operários chilenos estão terminando de construir, num sábado, já cansados do trabalho da semana, à diferença das ricas famílias de proprietários argentinos que vêm animados com um séquito de decoradores, domésticos e crianças, ansiosos para explorar – sob as ordens do arquiteto de classe média – o edifício de sete andares e sete apartamentos em que vão viver e se suceder pais e filhos, amos e escravos. Despedida e inauguração da vida?

Pois Os fantasmas são o puro prazer da leitura e da tradução, uma novelita em que a identificação do leitor tende a ser imediata, ainda que salutarmente desconfiada, por causa do envolvimento prático com o resultado concreto de uma construção pesada no bairro de Flores, em Buenos Aires, desde as primeiras linhas, sobre as quais vão aparecendo leves, coloridos e dramáticos personagens, humanos e não-humanos. Aliás, os personagens humanos parecem na maioria mais leves que os próprios fantasmas que, apesar da capacidade de atravessar paredes e de voar, são criaturas digamos difíceis (para dizê-lo com um adjetivo ambíguo, a fim de que o leitor possa tirar suas próprias conclusões).

A tradução pode ser vista como a despedida e a inauguração de uma outra vida do texto, a sua vida espectral, fantasmática, numa outra língua, num outro sistema de códigos linguísticos, que nesse caso de países-irmãos geográficos influencia e se deixa influenciar pela língua e pela cultura vizinha, ainda que das maneiras mais sutis à medida que vamos nos afastando dessa enorme fronteira imaginária. As dificuldades da tradução de Os fantasmas residem no fato de que elas habilmente se deslocam na narrativa rumo à Cordilheira dos Andes e ao Oceano Pacífico, pensando nos mesmos termos das tensões linguísticas e culturais de dois vizinhos geográficos, no caso da outra fronteira argentina, tão extensa quanto longilínea, em forma de uma imensa cadeia de rochas que se espraiam ao norte até a linha do Equador.

Mas, na verdade, as dificuldades tradutórias se resumiram ao fato de que os chilenos usam na fala o pronome pessoal “tú” e os argentinos usam o “vos”. Busquei soluções distintas para cada ocorrência, no fluxo do discurso indireto livre empregado pelo autor, levando em conta também os usos do “tu” e do “você” no Brasil. E se esta versão de Los fantasmas resultou razoavelmente fluente e suficientemente precisa, isso se deve ao trabalho conjunto com os revisores técnicos de Os fantasmas, aos quais agradeço sempre e muito.

E, para finalizar essa conversa, gostaria de lembrar e repetir que, com a novelita de 1990, César Aira fechava uma primeira década de publicações de seus hoje inumeráveis livros, longos, médios e curtos, após o surgimento de pelo menos três obras-primas: Ema la cautiva (1981), El vestido rosa (1984, que homenageia o “Recado do morro” de Rosa) e Una novela china (1987) – o primeiro e o último ainda inéditos em português, e o segundo, publicado numa velha antologia de literatura argentina, aguardando nova edição…

Desterro, maio 2017

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