O voo da mariposa suicida
Flávio Izhaki apresenta Ronda da noite, de Patrick Modiano9 de dezembro de 2014
O leitor brasileiro que adentrar a obra de Patrick Modiano por esse Ronda da noite terá feito uma bela escolha. O livro integra uma informal “Trilogia da Ocupação”, composta por seus três primeiros romances, sendo La Place de l’Étoile, de 1968, e Les Boulevards de Ceinture, de 1972, os outros dois. Trabalhando em uma época limite, em que tanto o coletivo como o individual estavam diretamente alterados pela guerra (e a sua perspectiva), Modiano pôde pensar o particular e a cidade, temas tão caros a sua obra posterior. Ele explora um momento em que tudo era nebuloso, mas existia uma certeza: o futuro próximo não seria daquele jeito, aquela vida do hiato, do durante, não perduraria. O mundo quedaria para um dos dois lados, por isso a urgência das personagens, a luxúria e a loucura de mãos dadas bailando pelos salões, ruas e bares da capital francesa, a falta de moral e o heroísmo fazendo fronteira, dividindo os mesmos pares na pista de dança.
Estamos na França, Segunda Guerra Mundial, e Paris foi abandonada à espera do pior. Não é a Cidade Luz, não mais, não naquele momento. “É necessário que eu dê tais detalhes, pois todo mundo os esqueceu.” Aí está Modiano em sua essência, o memorialismo particular como meio de atingir um todo. E quem narra é uma personagem sem nome, mas com duas alcunhas: Lamballe e Swing Troubadour. Pouco sabemos de onde ela veio (os lapsos serão, pouco a pouco, mas nunca inteiramente, preenchidos por Modiano), mas exatamente onde ela está, presa num presente que, mesmo efêmero (com o perdão da redundância), não pressupõe futuro. Um agente duplo, mas não o caso clássico. Trabalha para a escória que toma conta de Paris, mas também está infiltrado entre a Resistência, ou algo que poderia vir a ser uma Resistência. Os heróis! Cá sabe que ele está infiltrado lá. Lá sabe que ele está infiltrado cá. Ele leva e traz informações precisas. No fundo, não é um agente duplo, mas triplo: trabalha para os dois e para ninguém.
“Ziguezagueio através de um labirinto de reflexões e daí concluo que essa gente toda, repartida em dois clãs oponentes, está conjurada secretamente para acabar comigo. O Khédive e o tenente são uma só pessoa e eu não sou senão uma mariposa enlouquecida voando entre uma lâmpada e outra e queimando cada vez mais as suas asas.”
Somos apresentados a Henri Normand, o Khédive, e Pierre Philibert, um inspetor de polícia exonerado, personagens inspirados em duas figuras reais ligadas à Gestapo, e também a toda uma fauna de escroques saída dos quartos escuros de Paris: os pequenos e grandes golpistas, punguistas, prostitutas, morfinômanos. O autor construiu um livro feito de imagens e sensações, de falta de certezas absolutas e muitas reticências. Não é um romance de tese, que quer provar algo. Ele dá os fatos, bota as palavras nas bocas das personagens, mas nem tudo produz sentido num todo, propositalmente. De certa maneira, o herói de Ronda da noite lembra bastante Meursault, o personagem de outro francês ganhador do Nobel, Albert Camus, em O estrangeiro, um homem jovem que não consegue entender a extensão de suas atitudes.
Ronda da noite merece ser lido num só fôlego, numa tarde em silêncio, numa viagem de avião. Mas preferencialmente uma noite longa, escura, apenas o abajur bafejando luz sobre o livro. Trata-se de um romance-vertigem, uma novela em queda. A personagem já caiu, está para sempre relegada a um poço fundo e de paredes sem atrito, mas ainda salta, tenta se agarrar em algo, escapar. Não há fuga possível e ela mesma sabe disso, mas continua pulando. Modiano descama o pobre delator em uma série de memórias contorcidas, não lineares, pequenas neuroses repetitivas, minimamente alteradas. A maestria do autor está, entre outras coisas, em nos convencer que a personagem está cedendo a uma espécie de perda de identidade conforme a história é contada. Ou seria uma identidade movediça, algo como uma nuvem que se amalgama em outras, aumenta, depois se separa sem ter feito nenhuma escolha? Mesmo quando o narrador-personagem toma algumas decisões, ele parece não saber conjecturar como chegou até elas e o que deve ser feito a seguir. “Pensarão que eu não tenho ideais. Eu tinha a princípio uma grande pureza de alma. Isso se perde pelo caminho.”
Patrick Modiano nasceu em 1945, no ano em que a Segunda Guerra terminou, e sua obra é absurdamente impactada por ela. O autor tinha apenas 24 anos quando Ronda da noite foi lançado, mas o que lemos é um escritor maduro, já pronto, que maneja o tempo dentro do romance sem largar a corda, esticando para frente e para trás sem perder o prumo. Modiano já nos revela os grandes temas que perpassarão sua obra, a questão da identidade, da moral e de como ambas podem ser afetadas (ou atravessadas) pelo tempo em que vivemos. Um grande escritor é capaz de fazer da literatura moldura para perguntas, visões, nunca para um julgamento. O que está em jogo em Ronda da noite não é uma caça às bruxas, mas entender um mundo em que a moral é esmagada pelo presente da guerra, e em que a perspectiva da finitude não tardará. Ler o jovem Modiano já é perceber o grande escritor que viria a ser aclamado com o Prêmio Nobel de Literatura 45 anos depois.
*Texto originalmente publicado como posfácio da redição de Ronda da noite.
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Flávio Izhaki é autor de Amanhã não tem ninguém, finalista do prêmio Prêmio Portugal Telecom.