O personagem como interrogação

por Alvaro Costa e Silva
29 de agosto de 2016


Antônio Rascal é um autor de culto. Bastante alto – e “escritores geralmente não são tão altos”, notou seu primeiro editor –, escreveu um dos melhores romances brasileiros dos últimos 25 anos segundo a crítica. Surpreendentemente, não publicou nada novo em um período quase igual – 26 anos –, entrando para a galeria dos “mártires do silêncio”, na definição de Enrique Vila-Matas, e na qual se incluem nomes canônicos como o americano J. D. Salinger, o mexicano Juan Rulfo e o brasileiro Raduan Nassar.

Espere aí, isso é tudo ficção. Ou, à exceção dos outros escritores citados no parágrafo acima, Antônio Rascal é uma ficção.

Em seu mais recente romance, Flávio Izhaki constrói um personagem que é uma interrogação. Tentativas de capturar o ar apresenta o formato de uma biografia inacabada – um passo além da “autorizada” –, projeto do acadêmico Alexandre Pereira que fica no meio do caminho. Um editor de visão publica o livro mesmo assim, com direito a prefácio, posfácio, notas de pé de página, a descrição de entrevistas, encorpados com os diários de trabalho do autor. A cereja do bolo são dois textos supostamente inéditos de Rascal.

Livro

“No livro encontramos dois trechos que seriam desse autor cultuado. Um não sabemos se é ficção ou não, ou seja, pode não ser a literatura dele de fato. O segundo, sem entregar muito, é um texto que ele escolheu não publicar em livro”, explica Izhaki.

Verdade e texto literário se confundem na narrativa apoiada em um tripé de signos – identidade, busca e fuga. Há um atropelamento, mas houve de fato esse atropelamento? Como em seus romances anteriores – De cabeça baixa (2008) e Amanhã não tem ninguém (2013) – o autor mergulha na questão das relações familiares, um velho tema literário que ainda está longe de se esgotar quando em mãos habilidosas.

Conversei com Flávio Izhaki em uma tarde olímpica de agosto, no Villarino, Centro do Rio. Seguem os principais trechos temáticos da conversa:

Verdade e texto literário

O livro nasceu com o texto sobre o atropelamento. Foi a primeira coisa que escrevi. A princípio, pensei em falar sobre culpa, era meu mote inicial. Mas fiquei pensando: quem é essa pessoa, o atropelador? Como vou lidar com isso? Eu tinha um grande buraco negro no centro da narrativa: quem é esse personagem? Daí a ideia de fazer uma biografia para descobrir quem ele é. E poder jogar com a noção de verdade no texto literário.

Biografia

Eu nunca havia pensado em como se estrutura uma biografia a partir do zero, usando a técnica do jornalista, do pesquisador ou do historiador. Me atraiu a ideia de busca que há nesse processo. Acho que existe um vício nas biografias em geral de partir da infância do biografado, e nela descobrir algo revelador. No meu livro, o personagem do biógrafo não pensa nessa possibilidade. Na realidade, ele não faz o caminho tradicional percorrido por um biógrafo. Tanto que o que lemos são os diários da pesquisa dele. É como se ele estivesse ainda tateando, procurando chegar a algum lugar. Como entender uma pessoa apenas com cacos de informação. Cacos não só de vida, mas também literários, pois mostram o caminho de um autor, e a sua relação até hoje com o mercado editorial.

Parar de escrever

Um escritor que não tem mais vontade de escrever é perfeitamente possível. No fundo, é natural. Você pode notar que está se repetindo muito, ou que houve um esgarçamento de sua obra de tal natureza que não há mais saída, ou que você está publicando só por publicar – o pior que pode acontecer. É claro que, quando o escritor tem sucesso de vendas ou é reconhecido por seus pares e pela crítica, o impacto é maior. São os casos de J. D. Salinger (de quem li a recente biografia para escrever meu livro) e Raduan Nassar.

Marechal_Flavio

Afastamento total

Parar de escrever me parece uma continuação da pergunta “por que você escreve?”. Acho possível que, em algum momento, um autor acredite ter satisfeito a resposta inicial e dê seu trabalho por encerrado (estou pensando no caso de autores que pararam, não os que foram parados por questões de saúde ou anonimato). No caso de Salinger, a biografia anterior conhecida não dava resposta, só suposições. Quando as novas biografias começaram a aparecer, as respostas ficaram mais claras e o parar de escrever (ou o parar de publicar, uma diferenciação necessária) preencheram a maioria das lacunas. Soubemos mais de como ele precisou começar a escrever com aquela potência e conseguimos entender o que o levou a escolher o isolamento. Mas, para trazer a conversa para a minha personagem, o Antônio Rascal não se isolou. Ele apenas não quis mais publicar. Há uma alternativa mais radical que nem mesmo Salinger, Raduan e outros fizeram, que é cessar a publicação dos livros já lançados. Esse sim seria o verdadeiro afastamento total.

Incompletude

Eu busquei intencionalmente uma sensação de incompletude, de obra aberta. Há um embate no livro muito claro entre o biógrafo e suas certezas, que acabam se transformando em interrogações. Ao mesmo tempo, há o livro em si, preparado pelo editor, com prefácios, posfácios e notas. Além de dois textos – que podem ou não ser inéditos e autênticos – do escritor que é o objeto da pesquisa. O resultado é uma tentativa de fazer com que as interrogações se tornem verdades e, nas mãos do editor, um produto que seja rentável. Se tudo fosse verdade, seria uma maravilha para qualquer editora, que possivelmente entraria em contato com os herdeiros para fazer uma história em quadrinhos a partir dos textos inéditos. Imagine se aparecessem dois livros inéditos do Raduan Nassar. Mas no fundo é uma provocação, não só com o mercado editorial como também com as pessoas que têm necessidade de respostas para tudo.

Autoficção

É notável como a autoficção está em voga. Alguns autores assumem isso como se fosse um manual, usando até o próprio nome. João passeou na Europa, e tem um passaporte para provar. Ricardo se separou da mulher. Ali você põe tanta verdade, e mesmo considerando que o autor é um fingidor, que não sei se o leitor percebe o truque. Vai ler como verdade, e ponto final. É um vício muito grande. Meu livro discute esse cenário por outro lado, mostrando a possibilidade da verdade, mas dentro da ficção pura.

O escritor hoje

O escritor não é mais aquele pequeno texto bibliográfico que aparece nas orelhas dos livros. É, como qualquer pessoa, uma figura pública, que dá opinião no Facebook e no Twitter. Cada vez mais vamos deixando registros, não abertos, mas acessíveis, de nossa vida particular nas redes sociais. Acho que a situação está ligada à tentativa de profissionalização do escritor. Mas não deixa de ser um exagero.

Estilo polifônico

Como autor, mesmo tentando alcançar a tal da “voz”, tão idolatrada pelos escritores, é preciso estar atento para não cair numa zona de conforto que seja apenas a repetição do que foi feito nos livros anteriores. A irregularidade das vozes em Tentativas de capturar o ar, no caso, é também uma necessidade do livro e do estilo polifônico de narrar, que tenta abraçar várias vozes e visões. Se não houvesse irregularidade, seria uma polifonia de vozes iguais e monocórdicas, o que faria o livro naufragar.

Relação pai e filho

Os velhos temas são sempre interessantes e podem ser explorados com um olhar diferente. A relação pai-filho no livro nasceu da questão da sombra para um filho de um pai publicamente muito bem-sucedido, tratado pelo olhar do filho. Desenvolvendo o tema, me pareceu interessante pensar como essa dinâmica interna pode ser diferente do que é visto de fora e como ela, de certa forma, pode moldar a vida do filho.

O novo livro e os anteriores

Como autor eu diria que eles têm gêneses opostas. O Amanhã não tem ninguém nasce das personagens. São elas, separadamente, que foram ditando o que eu iria contar. Imaginava uma sala escura e holofotes em cima da cabeça de cada uma delas, cada vez mais luz, elas se amalgamaram em uma família, e no fim conseguem luminar todo o ambiente com luzes próprias e pontos de contato. No Tentativas de capturar o ar, eu tinha um autor que não mais escrevia e uma hipótese do atropelamento que poderia explicar tudo, mas também pode ser ficção. É como se fosse um círculo em que eu tinha a borda e tentava entender de fora para o centro desse círculo, que seria o personagem Antônio Rascal, quem ele era, uma grande interrogação como personagem principal. Só que por mais informações que o biógrafo conseguisse, parece sempre que ele jamais chegará ao centro. Esse núcleo é inalcançavel.

Romance, gênero preferido

Eu já participei de oito antologias de contos, com os mais variados temas e propostas. Se não fosse pela unidade, que todo bom livro de contos deve ter, dava para reuni-los em um volume. Mas estou descobrindo que o conto não é bem a minha. Ao menos agora. Os projetos que mais me atraem, hoje, pedem a estrutura do romance.

Projetos futuros

Estou muito no início de um trabalho e tenho uma decisão grande a tomar antes de dar prosseguimento. Por enquanto é só isso que posso falar.

Alvaro Costa e Silva é jornalista.

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