O meu passado te condena
por José Figueiredo20 de março de 2015
O devoto de romances policiais é um chato. Como eu sei? Sou um deles. Temos uma fome de anteontem pelo novo livro que só vai chegar amanhã, mês que vem ou, quem sabe, daqui a um ano. Apenas uma coisa consegue concorrer em dimensão com esse entusiasmo: a frustração com novidades no mercado de péssima qualidade, mas embrulhadas com muito marketing. Como é notório, Aldir Blanc tenta há décadas escrever seu primeiro policial sem sucesso. Leitor voraz de mistérios, ele já disse que este é o seu maior desafio na literatura.
Isso tudo para confessar meu pé atrás inicial diante deste Brutal, romance de estreia de Luke Delaney, pseudônimo de um detetive com mais de 20 anos de serviço à polícia de Londres (dá para acreditar que alguém consiga manter secretas sua identidade e sua segunda atividade profissional trabalhando com centenas de investigadores? História muito mal contada…). Uma googlada melhorou o ânimo: o autor passou pelo teste de estreia e a Brutal se seguiram mais três livros protagonizados pelo detetive Sean Corrigan. Vencer num mercado que deu ao mundo um time que conta, entre outros, com Agatha Christie, Conan Doyle, P.D. James, Ruth Rendell, Peter Robinson e Kate Atkinson não é pouca coisa. E a leitura veio confirmar que o policial escritor tem bala na agulha.
Brutal tem vários méritos. O primeiro e mais importante: prende a atenção do leitor desde o início, numa gangorra em que numa hora fica-se cheio de convicção sobre a elucidação do mistério e, na outra, volta-se a ficar cheio de incertezas. Obra de fôlego — tem mais de 400 páginas —, acompanha-se a caçada levada a cabo pelo detetive-inspetor Corrigan a um assassino que aspira a assinatura de crimes perfeitos: sem testemunhas, sem pistas, mortes sem ligação alguma.
Embora a galeria de personagens do romance, cerca de uma dúzia, seja toda bem desenhada, o leitor vai logo descobrir que o grande trunfo de Brutal é o duelo entre Corrigan e o seu principal suspeito, um alto executivo do mundo financeiro, brilhante, vaidoso e com um passado aparentemente blindado contra olhares policiais.
Todo escritor de histórias policiais que almeja a criação de uma série que caia no gosto da tribo dos fãs do gênero tem o mesmo dever de casa: criar um detetive que se diferencie dos já consagrados e vença a tal resistência dos seus “chatos” leitores. Luke Delaney passou no teste: o seu Sean Corrigan, apesar de um perfil sombrio ao extremo — sofria abusos sexuais do pai quando criança —, é de uma grande empatia e nunca põe em risco sua verossimilhança. E são suas memórias dos terrores vividos na infância que vão transformá-lo num investigador capaz de pensar como os predadores sexuais que persegue. (Os conflitos internos vivenciados por Corrigan, o seu andar muitas vezes no limite entre o bem e o mal, evocam outros grandes detetives da ficção, como o Harry Bosch, de Michael Connelly.)
Para sorte do leitor, Delaney foi além do “dever de casa”, criando um antagonista capaz de medir forças com Corrigan. James Hellier é o diabo, mas que diabo atraente! A inteligência e o charme do suspeito número um remeterão muitos leitores, acredito, à maior criação do americano Thomas Hardy: o carnívoro Hannibal Lecter, de, entre outros, O silêncio dos inocentes.
Outro dos méritos de Brutal são as escolhas narrativas de Luke Delaney. Ao longo de todo o romance, a narração se alterna entre uma feita em primeira pessoa (o criminoso) e uma em terceira, que dá conta das investigações de Corrigan e equipe. Não é inédita, mas acredite: ao chegar ao ponto final do livro, você vai experimentar aquela sensação de quando se assiste a O sexto sentido pela primeira vez: vai querer começar tudo de novo, não acreditando na rasteira sensacional pregada pelo autor.
Só não se recomenda Brutal a quem tapa o nariz para uma literatura que não economiza na descrição da violência. Já trivial no cinema e nas séries de TV, a “profanação” do cadáver na ficção criminal ainda encontra resistência de alguns leitores, apesar do sucesso da atual safra de escritores escandinavos, que fazem da descrição minuciosa do processo de assassinato e das dilacerações no corpo da vítima uma de suas marcas. Longe vão os tempos em que os mortos perdiam a vida sem perder a compostura…
José Figueiredo é jornalista.
Agora mais do que nunca quer ler esse livro!
Estou lendo o livro e com sentimentos dúbios; mas o autor faz uma sacada legal por fazer esse jogo de esconde esconde.
Foi o Thomas Harris que escreveu a série Hannibal, não o Hardy. Gostei por ser em Londres, senti uma vive “This is my design”. Acredito que o autor possa ter sim um pseudônimo e ninguém descobrir, mas isso requer trabalho de anos para que poucas pessoas consigam o desmascarar. Viajei!!
Gostei da resenha. Tô com medo desse final. tô achando uma coisa e pode ser outra.
Comecei a ler esse livro com um pé atrás, temerosa de que fosse me decepcionar com a narrativa e depois a mesma se tornaria massante, mas para minha completa surpresa e felicidade, não foi isso que aconteceu. “Brutal” não é apenas mais um título legal com boa propaganda, é mais do que isso. O livro é incrível desde a arte da capa até o ponto final da narrativa; envolto num mistério sombrio e na margem da sanidade que cerca Sean, esse romance policial é um dos mais bem escritos que já li. Concordo plenamente com a colocação feita por José Figueiredo “Longe vão os tempos em que os mortos perdiam a vida sem perder a compostura…”, o livro é realmente dotado dessa qualidade, a descrição exata do crime bárbaro deixa a história ainda mais emocionante pela veracidade dos fatos. Sem sombra de dúvidas Luke veio com um grande presente para os fãs e admiradores desse tipo de história. A Rocco está de parabéns pela chance de publicação de um livro tão intenso como esse.