O espelho transexual: o outro do outro e mais além
Carlos Eduardo Leal analisa A garota dinamarquesa pelo ponto de vista de um psicanalista2 de março de 2016
“Einar sentia-se solitário, e ficou imaginando se alguém no mundo chegaria a conhecê-lo de verdade um dia”. A garota dinamarquesa
A aflição angustiante de não pertencimento ao próprio corpo dá uma ideia muito aproximada das histórias de terror. As histórias de possessão e exorcismo dizem de um corpo que foi possuído por um espírito maléfico para ao fim e ao cabo arrebatar-lhe a alma. A sensação de não pertencimento angustia, provocando nos sujeitos estranhamento e atopia.
Freud, ao trabalhar o conceito de “o estranho” o faz a partir do conto O homem de areia de E.T.A. Hoffman. A palavra ‘estranho’ em alemão é “unheimlich” que literalmente designa “não familiar”. Para Freud, aquilo que um dia foi extremamente familiar retorna como estranho provocando o horror do fenômeno do duplo. Edgar Alan Poe, Guy de Maupassant, Nikolái Gogól entre muitos outros exploraram com mestria este tema do duplo, ou de como este outro se torna um terceiro indesejável. Terceiro do qual o sujeito quer se livrar a qualquer custo. Sim, a qualquer custo.
Pois é isto que ocorre a um transexual. Ele/ela vive num corpo que não é o seu. Há um terceiro em jogo. Um terceiro indesejável. Ele vê este corpo e quer modificá-lo. Não se sente em casa. Ou melhor, é um estranho (unheimlich) dentro da sua própria casa. Então, uma questão se propõe: como ser aquele que se é dentro de outro corpo? Não há dúvida neurótica. Não há lugar para interrogações do tipo: sou assim mesmo? Será que quero outro corpo ou este me basta?
O que o transexual vê no espelho é da ordem de um horror. Rejeita o que vê e quer ‘transformar-se’ num outro. O outro do outro. “Lili aprendera a ter sempre um espelho na bolsa, e ficava dentro da cabana de lona, naquelas manhãs de verão, olhando para si mesma e passando o espelho por cada centímetro de sua pele (grifo meu)…” pág. 144. A louca procura por esta outra pele, uma camada de pele de mulher (não diria feminina, pois isto é de outra ordem) que ateste que Einar Wegener pertence a outro gênero que não o seu. Que esta procura ateste que foi criado numa identidade errada e quer transformar-se. Reinventa-se em Lili. Lili Elbe, assim como o rio. Não é apenas uma questão de gênero e identidade. Há toda uma manipulação para ser outro além do espelho.
Para a psicanálise lacaniana a questão de fundo é se houve uma falha na função paterna (foraclusão do Nome-do-Pai), produzindo no transexual um delírio psicótico de ser um outro.
Para os homens, no lugar da castração simbólica, a ablação peniana e posterior reconstrução da vagina. Para as mulheres transexuais a colocação de uma prótese peniana.
Mas as questões não são tão simples como aparentam. Em casos de cirurgias bem-sucedidas o arrependimento vem da constatação de que a felicidade deve ser buscada em outro lugar e não naquilo a que se reduz um corpo.
Lea T., modelo brasileira transexual e filha do ex-jogador da seleção brasileira Toninho Cerezo, deu sua primeira entrevista, após realizar operação para mudar de sexo. Dentre outros assuntos, ela citou certo arrependimento durante o período em que se recuperava e que só depois descobriu que a felicidade não viria através disso.
“Achava que minha felicidade viria por causa da cirurgia, mas não foi. Eu fiquei mais a vontade, mas a felicidade não vem de um pênis ou uma vagina. Não sou uma mulher completa. Nunca vou ser 100% mulher”, declarou a modelo.
Mas o belíssimo livro, A garota dinamarquesa, é muito mais do que uma discussão sobre a espinhosa questão transexual. É também uma extraordinária lição de amor de Greta/Gerda Waud por Einar/Lili. Mas isto já é outra história. E mais além…
poderia me explicar melhor sobre o fenômeno do duplo e a relação com a transexualidade? estou escrevendo um artigo e gostei bastante do que você escreveu.