O cotidiano em assombros e delicadezas
por Marcelo Moutinho24 de abril de 2015
Na dobra do dia, a crônica que deu título ao meu novo livro, trata daquele instante em que se torna impossível definir se ainda é tarde ou a noite já chegou. Um momento fronteiriço. Escolhi justamente esse texto para abrir o volume porque a crônica, como gênero, se confunde com o crepúsculo em suas bordas borradas, pouco precisas.
É subjetiva, mas em geral ancorada em fato cotidiano. É literatura, mas esbarra no jornalismo. Não é feita para durar, mas muitas vezes permanece, atemporal, em sua forma e seu conteúdo. “Como no preceito evangélico, aquele que quer salvar-se acaba por perder-se; e aquele que não teme perder-se acaba por se salvar. No caso da crônica, talvez como prêmio por ser tão despretensiosa, insinuante e reveladora”, observou Antonio Candido em célebre texto sobre o assunto.
Ao selecionar as 52 crônicas de Na dobra do dia, tive como norte essa premissa. Entre os tantos textos escritos nos últimos anos, escolhi aqueles que, longe da quentura do acontecimento, parecem continuar iluminando o cotidiano em suas insuspeitadas belezas, entre mistérios e sombras, assombros e delicadezas.
Na primeira fração do livro, “Pequenos amores da armadilha terrestre”, reuni as crônicas mais íntimas, ligadas à casa, à família. Em “As ruas pensam”, segunda unidade, estão os escritos com o pé na rua, que abordam lugares e personagens da cidade. As frases que servem de título às duas partes citam Paulo Mendes Campos e João do Rio, dois cronistas que souberam, cada um à sua maneira, vislumbrar transcendência no que se sugeria ordinário.
Em alguns momentos, hesitei ao tirar um texto e incluir outro. A derradeira troca se deu com o arquivo já na editora, para desespero do pessoal da arte. Mas, ao fim do trabalho, a impressão é que o livro se tornou exatamente aquilo que eu gostaria que fosse. Matéria de memória, recolha de histórias. Como a da moça que observa o mundo de uma janela da Praça Tiradentes ou a do menino que trai o pai na hora de escolher o time. O homem que maneja sua pipa imaginária na esquina da Mem de Sá com a Gomes Freire, a lembrança de uma festa de Cosme e Damião, o desalento da casa vazia. É a vida que pulsa, por vezes silenciosa, nas miudezas.
Marcelo Moutinho nasceu no Rio de Janeiro, em 1972. É autor dos livros A palavra ausente (Rocco, 2011), Somos todos iguais nesta noite (Rocco, 2006) e Memória dos barcos (7 Letras, 2001), e do infantil A menina que perdeu as cores (Pallas, 2013).