Nota sobre a tradução de “There, There”, de Tommy Orange
por Ismar Tirelli27 de novembro de 2018
A comunidade literária anglófona vem demonstrando entusiasmo unânime em sua recepção de Lá não existe lá (There there, no original), romance de Tommy Orange que já foi descrito como um “novo tipo de épico americano” (The New York Times) e prenunciador de uma nova “Renascença Ameríndia” literária (The Paris Review). Segundo a escritora americana Pam Houston, o romance de estreia de Orange estaria fadado a refazer não apenas o cânone da literatura ameríndia, mas o cânone literário americano como um todo. Porém, é partindo desta especificidade ameríndia que Orange – membro das tribos Cheyenne e Arapaho, nascido e criado na Oakland onde o romance é ambientado – ergue sua narrativa estilhaçada, coral, cujo alcance e sucesso acenam – em tempos tão sombrios – para a retomada auspiciosa de uma literatura que hibridiza testemunho pessoal e ficção de alta voltagem. Trabalhando esta especificidade, a sua, Orange alcança não a exausta e suspeitíssima abstração de uma “universalidade” – ao contrário, trata-se antes de abrir caminhos para uma espécie de contra-ataque à mesma. Tanto na construção das personagens quanto nas situações por elas vivenciadas, não se detecta vestígio de complacência. Orange evita os tropos mistificadores sem incorrer em oposto igualmente estéril: a traição, que significaria, em última instância, retratar seu povo como escumalha social, retirando-lhe agência. A urgência de pertencimento que impulsiona os personagens e os conduz a decisões de vida frequentemente trágicas reflete-se na própria velocidade da narrativa, criando um ritmo vertiginoso que nos dá a impressão – como já disse Sam Shepard a respeito do escritor e dramaturgo alemão Peter Handke – de que o que está em jogo aqui é a própria vida do próprio escritor.
A insistência de Orange em falar de um povo múltiplo no tempo presente — “a present-tense people, modern, and relevant, alive” – deu o tom de algumas das dificuldades que se apresentaram ao longo do processo de tradução. Em especial, a coloquialidade com que se expressam certas personagens mais jovens, que pode ser lida de pelo menos três maneiras: signo de urbanização compulsória, exemplo de permeabilidade cultural e índice da urgência de pertencimento de que falamos acima. Em diversos momentos, o contingente mais jovem se exprime através de modulações perfeitamente identificadas ao gangsta rap. Vê-se formar, neste caso, uma espécie de aliança linguística entre classes historicamente oprimidas. A vontade de tornar explícita esta aliança em outro idioma esbarrou com frequência na sensação, por parte do tradutor, de que a especificidade tão cara ao autor se dissolvia numa fantasia generalizante de dicções periféricas. Por outro lado, soaria um bocado ridícula, para não dizer desrespeitosa, a transposição imediata desta realidade cultural para uma outra análoga mais familiar ao leitor brasileiro. O sucesso das soluções encontradas, o próprio leitor terá ocasião agora de julgar. Predominou, ao fim e ao cabo, a intenção de tornar claro para o leitor brasileiro algum pacto entre falares oprimidos, de modo a conotar a tensa e constante negociação identitária a que as personagens se veem sujeitadas e também a formação de uma frente linguística comum de resistência, um “submundo”. Como aventa George Steiner em seu “Depois de Babel: Questões de Linguagem e Tradução”: “Para as classes dominadas, a fala é igualmente uma arma e uma vingança.”
Verter o título do romance para o português foi, sem dúvida, o maior desafio de todo o processo. “There There” está em estreita comunicação com duas referências explicitadas no texto – uma canção da banda Radiohead e um trecho de Autobiografia de todo mundo, de Gertrude Stein, onde a autora refere-se a Oakland (onde ela própria fora criada) como uma espécie de ermo, dizendo, famosamente, que “there is no there there”. A canção, embora figure no texto como que de passagem, abre uma perspectiva de apaziguamento fajuto, condescendência, infantilização. “There, there”, assim como “There, now” ou “There you are”, são expressões comumente utilizadas por pais que querem sossegar seus filhos após algum tipo de choque, espécie de “embalo” verbal que poderia ser traduzido como “foi só um susto”, “não é um ferimento de verdade”. Ao berrar esta fórmula de minimização da dor alheia – que deveria, idealmente, fazer as vezes de uma carícia –, o cantor Thom Yorke põe a nu as reais dimensões de uma dor que não pode nem deve ser minimizada. “Só porque você o sente, não significa que está lá”.
Perder este sentido – tão sugestivo de como as reivindicações das minorias são recebidas pelas instâncias de poder – revelou-se, de alguma forma, um mal necessário. Foi preciso colocar na balança estas duas referências e buscar entender qual delas fazia mais peso no contexto geral da narrativa. A opção por privilegiar a citação de Stein no momento de decidir o título em português deve-se muito simplesmente ao fato de que ela ressoa de maneira mais pujante no interior do próprio livro, a ponto de tornar-se uma espécie de motivo oculto do romance. Afinal, haveria maneira mais eloquente de sugerir o não-lugar habitado por estas personagens? “Ser índio nunca teve relação com retornar à terra. A terra é toda parte e parte alguma”, afirma o próprio Orange no ensaio que abre o volume.
Lá não existe lá foi a maneira como os tradutores Júlio Castañon Guimarães e José Cerqueira Cotrim Filho solucionaram a frase “there is no there there” em sua tradução de Autobiografia de Todo Mundo estampada pela Editora Nova Fronteira em 1983. Por nos parecer a um só tempo clara e respeitosa das idiossincrasias da autora, optamos por utilizá-la como título em vez de alternativas mais sonoras e extravagantes como “Não há lá lá” ou “Lá não há lá”. Aproveitamos a ocasião, portanto, para agradecer aos tradutores mencionados acima por nos apontar a saída mais razoável a um problema que ocupou tanto o tradutor quanto o editor por alguns meses.
*Ismar Tirelli Neto é poeta e ficcionista, autor de Os Postais Catastróficos, Os Ilhados, A Mais ou Menos Completa Ausência, entre outros