Na suspensão da espera

Guiomar de Grammont apresenta "Palavras cruzadas"
12 de agosto de 2015


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Comecei meu romance como um livro de memórias, num gênero de autoficção, em que eu mesma era a pessoa que investigava os fatos que levaram à morte trágica do meu pai, em novembro de 1975, quando eu tinha 12 anos. Meu pai não era um guerrilheiro, era engenheiro,  obcecado pela descoberta de jazidas preciosas em um Brasil ainda por desbravar. Formou-se na Escola de Minas de Ouro Preto, onde conheceu minha mãe.

Em um determinado momento da narrativa, percebi que era doloroso demais o esforço de lembrar, enquanto a ficcionalização me trazia algum alívio. Eu conseguia lidar melhor com os sentimentos deslocando-os para minhas personagens, Sofia e a mãe dela.

Palavras cruzadas, contudo, apesar de ter tido esse ponto de partida, é uma obra literária madura. Refleti muito e me desenvolvi como escritora, nos anos em que permaneci sem publicar, sempre bordejando a literatura, como organizadora de eventos literários, professora e editora.

Palavras cruzadasFui obrigada a esses caminhos, pois tudo conspirava para o abandono da escrita, apesar de eu ter tido prêmios, como a Bolsa Vitae e o casa de Las Americas, de Cuba. Comecei a trabalhar muito cedo, já casada e mãe desde os 16 anos, morando em uma cidade distante do interior de Minas, ainda que esta cidade seja a esplêndida Ouro Preto.

Retrabalhei muito esse romance, a partir das observações dos amigos. Pesquisei demais, chegaram às minhas mãos documentos inéditos sobre a guerrilha, que utilizei na ficção, mas procurei sempre construir um texto verossímil, que pudesse provocar interesse e curiosidade do início até o fim. De fato, quem começa a lê-lo e consegue passar da página 50, quando finalmente entra a história de Sofia, a jornalista que busca o irmão desaparecido, não consegue mais largar o livro até terminar. Alguns amigos meus disseram que leram de uma sentada, em uma noite, sem conseguir largar o livro até amanhecer.

No princípio, minha ideia era construir o relato de uma guerrilheira, sempre do ponto de vista feminino. Contudo, minha personagem feminina se dividiu em masculina em um certo ponto da narrativa, como em Orlando, de Virginia Woolf (mas dando a essa mudança uma explicação verossímil). A razão é que as experiências narradas pelos guerrilheiros homens que sobreviveram eram, por vezes, tão grotescas e fortes, que não combinavam com a mulher que eu havia criado, que era mais frágil, pouco adaptada à vida dura da guerrilha. Um exemplo dessas experiências é o momento em que o guerrilheiro do meu livro, sem poder fazer fogo, devora, cru, o fígado de um jabuti.

Meu romance expressa, também, meu sentimento de comiseração e solidariedade para com todas as pessoas que tiveram um ente querido desaparecido. Não há nada de mais terrível, pois não há uma conclusão, um desfecho. A vida permanece, para sempre, na suspensão da espera. Sofia não consegue construir nada em sua vida, pois existe para preencher essa falta. Como ela, muitos parentes vivem até o fim de suas vidas a presença, intensa e obsedante, do ser ausente. E muitas pessoas desaparecem, ainda hoje, no Brasil.

Meu livro fala desse vazio. Não fiz um romance pró-guerrilha, de forma alguma. Sou radicalmente pacifista e meu livro é um libelo contra a luta armada. Palavras cruzadas convida a uma reflexão sobre a tolerância, a paz e, sobretudo, sobre o direito à memória.

Guiomar de Grammont

Guiomar de Grammont é escritora, dramaturga e professora universitária. Foi editora, curadora de Bienais do Livro e da parte brasileira de eventos literários internacionais, como a Feira de Bogotá e o Salão do Livro de Paris. Criou e dirige desde 2005 o Fórum das Letras de Ouro Preto. Em 2015 lançou, pela Rocco, Palavras cruzadas.

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