Mantendo um olho aberto
Por Kelvin Falcão Klein31 de outubro de 2017
O romancista inglês Julian Barnes, consagrado por livros irretocáveis como O papagaio de Flaubert e O sentido de um fim, reúne agora seus textos sobre arte em Mantendo um olho aberto. O volume (ricamente ilustrado) reúne 17 artigos que analisam variados artistas de diversos contextos, desde os franceses do século XIX (Courbet, Degas, Cézanne) até visionários do século XX, de René Magritte a Lucien Freud. O esforço de escapar da mera descrição de obras ou relato biográfico dos artistas é o que faz a costura entre os textos, todos eles, além disso, feitos na prosa precisa de Barnes.
Ao mesmo tempo em que é capaz de juízos sucintos e reveladores (“Pissarro considerava que, quando Manet surgiu, ele fez Courbet de repente parecer apenas parte da tradição, acrescentando que Cézanne faria precisamente a mesma coisa com Manet. Isso se comprovou”), Barnes também é muito eficaz em mostrar como as obras e os artistas atravessam a sua própria vida. Não apenas a “vida do escritor”, mas sobretudo a vida subjetiva, emocional do indivíduo Julian Barnes.
Falando de sua juventude em Paris, vindo de uma infância sem qualquer interesse digno de nota por arte, Barnes relata sua transformação no Museu Gustave Moreau: “Eu estava inseguro sobre o que achar daquela obra: exótica, ornamentada e de um brilho obscuro, com uma estranha mistura de simbolismo privado e público, ao qual eu tinha dificuldade em dar algum ordenamento. Talvez tenha sido esse caráter misterioso que me atraiu; e talvez eu admirasse Moreau especialmente porque ninguém tinha me dito para fazer isso”.
Ninguém tinha me dito para fazer isso: essa postura, essa descoberta, será central para o “narrador de arte” que será Barnes. O que torna seus artigos interessantes e enriquecedores para o leitor é, sim, as informações que veicula, mas, antes de mais nada, a carga ficcional que se entrevê em sua realização. E por “ficcional” entendo aqui esse desejo de construir uma narrativa da experiência de ver a arte. Mais do que coletar e reorganizar aquilo que já foi dito sobre obras e artistas, Barnes usa esse material para dar cor e vivacidade ao seu percurso, ao seu olhar.
Como romancista, Barnes é um curioso, alguém que busca pelos detalhes reveladores das histórias. A mesma curiosidade se aplica aos seus textos sobre arte. Naquele dedicado ao pintor suíço Félix Vallotton, Barnes rápida e vividamente conta a história de formação da Coleção Cone, do Baltimore Museum of Art: duas irmãs, herdeiras de uma fortuna na virada do século XX, resolvem “gastá-la com arte”. Anos mais tarde, em 1929, ao escrever seu testamento, uma das irmãs declara que a coleção poderia ir para o museu de arte local, “caso o apreço pela arte moderna em Baltimore crescesse”. Caso não, havia uma cláusula que indicava que as obras deveriam ir para Nova York. A rivalidade geográfica fez o resto, e o museu de Baltimore é agora referência mundial.
Barnes vai do contexto histórico ao detalhe iconográfico em poucas linhas, dando à narrativa uma fluidez que prende o leitor. “Degas passou quatro horas penteando o cabelo de uma modelo”, escreve ele. “Quatro horas (e essa foi apenas uma das ‘quatro horas’ dentre muitas): a obra de Degas está repleta de momentos em que o cabelo é ‘visto’. Cabelo íntimo, informal – cabelo pendendo”, e assim por diante. Ao revisitar imagens por vezes tão conhecidas – tão reproduzidas e acessíveis –, Barnes consegue sempre renová-las, salientando elementos que passam despercebidos e que, agora, não conseguimos mais ignorar.
*Kelvin Falcão Klein é crítico literário e professor de literatura na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.