LITERATURA E HOSPITALIDADE

Kelvin Falcão Klein escreve sobre as transformações advindas do lidar com vizinhos
2 de janeiro de 2018


O problema da convivência persegue a humanidade desde os primórdios. Podemos pensar na “horda primitiva” de que fala Freud em Totem e Tabu, protótipo do núcleo familiar, com seu equilíbrio delicado entre violência e aconchego. Ou a célebre fábula do Jardim do Éden, no Gênesis: Adão e Eva viviam em harmonia, nomeando plantas e animais durante seus dias, até a intervenção da Serpente, vizinha impertinente, que rompe as regras tácitas da convivência. É bem provável que um dos traços civilizatórios que mais aproxima os indivíduos nas cidades seja justamente esse, o problema de lidar com vizinhos.

Essa intuição é reforçada pela leitura conjunta e cruzada de dois romances recentes, Gostar de ostras, de Bernardo Ajzenberg, e Gog Magog, de Patrícia Melo. São distintos em tom e estilo – as frases de Patrícia Melo são curtas, às vezes uma única palavra, as imagens abruptas, violentas; as de Ajzenberg são mais fluidas, hipotaticamente ordenadas; ambos usam bastante o diálogo –, mas a situação central que movimenta os romances é compartilhada: um estado de harmonia é rompido com a intervenção de vizinhos.

Em Gostar de ostras, o protagonista Jorginho vive abaixo de um casal francês, os Durcan. Em Gog Magog, um professor de biologia perde a paz quando Ygor, o novo vizinho, se muda para o apartamento do andar de cima. A partir daí, inicia-se a transformação dos protagonistas – no caso do primeiro, em direção a uma revisão de hábitos e um novo modo de encarar a vida (no presente e no passado); no caso do segundo, em direção a uma resolução de consequências trágicas para os dois envolvidos. Foi de Marcel, seu vizinho octogenário, diz Jorginho, “que ouvi pela primeira vez a palavra ‘resiliência’, como sinônimo de capacidade de recuperação e superação de traumas, recompondo de alguma forma aquilo que havia antes”.

No caso do professor de biologia de Patrícia Melo, o encontro com o “outro” (que ele chama de “Senhor Ípsilon”) não leva à superação de traumas, e sim à intensificação deles. Instaura-se um campo de conflito que só se amplia, revelando os piores sentimentos dos envolvidos – daí o título do romance, retirado da Bíblia, cujos termos remetem à história de indivíduos e regiões violentas e monstruosas (Magog pode ser um outro nome para Babilônia, por exemplo). “É estranho invadir a casa de alguém que supostamente tem poder sobre nós”, escreve o professor quando entra no apartamento de cima, e continua: “Foi inevitável constatar a súbita fragilidade do senhor Ípsilon. E minha infinita vantagem sobre ele. Se no andar de baixo eu era vítima, ali eu ganhava soberania. Andei pelo apartamento sentindo o magnetismo dessa força”.

A leitura dos dois romances oferece, portanto, um espaço de reflexão sobre o campo de tensões que se arma toda vez que nos vemos diante de alguém diferente, mas com quem devemos, forçosamente, conviver. Seja com o foco no passado remoto (Babilônia, “olho por olho, dente por dente”) ou no passado recente (“a personagem Rachelyne Durcan é inspirada livremente na vida da francesa Marceline Loridan-Ivens, sobrevivente do campo de concentração de Birkenau-Auschwitz”, diz a nota do autor em Gostar de ostras), a literatura lida com o cotidiano e sua permanente fricção contra o insólito e o desconhecido, modulando emoções e sensações compartilhadas coletivamente.

*Kelvin Falcão Klein é crítico literário e professor de literatura na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.

TAGS: Bernardo Ajzenberg, Gog Magog, Gostar de ostras, Kelvin Falcão Klein, Patrícia Melo, relacionamento, Vizinhos,

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