Leia com orgulho

Convidamos o historiador Victor Menezes para nos contar como a literatura esteve presente em sua vida e o ajudou no seu processo de autoaceitação.
28 de junho de 2021


A maior parte das lembranças que tenho de minha infância são muito felizes e acho que grande parte se deve ao fato de que eu passava quase todas as tardes lendo algum livro infantil (em especial, as histórias do “Sítio do Pica Pau Amarelo”) enquanto minha mãe lia romances como os da “Coleção Sabrina”. Foi ela, minha mãe, quem me apresentou o mundo da literatura e que me ensinou que um livro, independente do gênero ou período em que foi escrito, pode ser um bom amigo. Se as lembranças de minha infância são maiormente felizes, o mesmo não posso dizer em relação às da primeira metade de minha adolescência. Por volta dos 10 ou 11 anos de idade comecei a entender que não era como a maioria dos demais garotos que conhecia. Talvez, desde que entrara na escola, aos 6 anos, eu já havia percebido isso; mas foi somente nesse momento de passagem da infância para a adolescência que comecei a ter certeza de que, ao contrário das expectativas de meus familiares e colegas de escola, eu gostava de meninos e não de meninas.

Naquela época, anos 2002-03, pouco se discutia na grande mídia, assim como nas obras literárias das quais eu tinha acesso, questões ligadas à temática e ao mundo LGBTQIA+. O que eu sabia sobre ser gay resumia-se basicamente em: 1. No que ouvia na igreja evangélica que frequentávamos (sempre críticas negativas, claro); 2. No que de vez em quando aparecia nas telenovelas que assistíamos (cujas representações de personagens LGBTs tendiam a ser pejorativas e/ou estereotipadas); 3. O que colegas de escola falavam (sempre em tom de zombaria). Ou seja, o mundo ao qual eu tinha acesso estava sempre me dizendo que eu “era um pecador”, que “nunca seria realmente feliz” e que, por ser diferente, “merecia ser zuado e apanhar”. Foi nesse momento que passei a sofrer bullying na escola. Como não podia dizer aos meus pais o motivo do bullying (eu ainda não me aceitava como gay e imaginava que meus pais jamais aceitariam), simplesmente fingia para eles – e também para muitos de meus professores – que nada acontecia.

Foram tempos sombrios nos quais, mesmo cercado por pais amorosos, senti-me sozinho no mundo. Na ausência de amigos físicos e diante da impossibilidade de contar para a minha família o que estava acontecendo, os livros de literatura se tornaram, então, meus únicos conselheiros. Eu chegava da escola por volta do meio-dia e passava toda a tarde e parte da noite devorando livros e mais livros. Certa vez, minha mãe me deu o exemplar dela de um de seus romances brasileiros favoritos: “A Moreninha”, de Joaquim Manuel de Macedo. Assim que o li, ele se tornou também um de meus favoritos e o responsável por abrir as portas para a leitura de diversos outros romances brasileiros do século XIX. Era animador esquecer os meus problemas do mundo real e vivenciar diariamente os conflitos das mocinhas e dos mocinhos do romantismo brasileiro. Em mais de um momento me vi, por exemplo, em Lauro, o protagonista de “O Moço Loiro” que fora injustamente condenado por sua família; em Lúcia/Maria da Glória, a cortesã que rompera com uma série de normas da sociedade de seu tempo no romance “Lucíola”, de José de Alencar; e em Helena, de longe minha heroína machadiana favorita.

Apesar de ter me tornado um leitor assíduo de Macedo, Alencar e Machado, entre tantos outros (não demorou muito para que me aventurasse também nos clássicos escritos no século XIX por autores portugueses e ingleses – vêm desse tempo o meu fascínio por Jane Austen, aliás), nada me cativava mais do que os livros da série “Harry Potter”. Sem sombra de dúvidas, Harry, Hermione e Rony foram os meus melhores amigos entre os anos de 2003 e 2007. É curioso que já naquela época, Hermione era a minha personagem favorita. Todo o preconceito sofrido por ela no mundo bruxo fazia com que eu me visse na personagem. Talvez, por naquele momento ainda não sabermos que Dumbledore é um personagem gay, não tenha sido ele o personagem com o qual mais me identifiquei. Pensando nisso agora, aliás, noto que eu tinha uma tendência em me identificar muito mais com as personagens literárias do gênero feminino do que com as do gênero masculino. Na falta do que hoje chamamos de representatividades LGBTQIA+, acabava por me identificar com personagens que fugiam dos estereótipos e signos de masculinidades nos quais eu não me enquadrava. Personagens femininas como a Hermione, portanto, constituíam muito do que eu buscava ver e ser.

Sem a companhia e influência destes amigos de papel teria sido difícil, talvez impossível, superar as adversidades da primeira metade de minha adolescência e conseguir, ao final desta fase, enfim fazer amigos de carne e osso. E tudo aconteceu graças a “Harry Potter”! Por volta de 2007, já no Ensino Médio, consegui me aproximar de outros fãs do menino que sobreviveu que acabaram por se tornar grandes amigos. Entre nós, nunca falávamos sobre nossas sexualidades, mas no fundo sabíamos que éramos todos LGBTs. Das lembranças marcantes que tenho dessa época, por certo uma das melhores está relacionada ao frenesi que a leitura dos romances “O Bom-Crioulo”, de Adolfo Caminha e “O terceiro travesseiro”, de Nelson Luiz de Carvalho – os dois primeiros livros com temáticas homoeróticas que li – causou em todos nós. A companhia destes amigos tão verdadeiros, com os quais passei a trocar experiências e dicas de leitura, foi essencial neste período final da adolescência.

Já a minha auto aceitação como homem gay não foi simples e rápida, mas finalmente aconteceu em meados de 2012, num momento em que eu já não morava mais com meus pais e cursava o terceiro ano da graduação em História. Eu não era mais aquele menino assustado e solitário de dez anos atrás; muito pelo contrário: estava rodeado de bons e novos amigos e do namorado que atualmente é meu marido. Mas nem por isso a literatura deixou de ser um fator importante neste processo. Naquele ano, um dos livros que li e reli um par de vezes foi “As vantagens de ser invisível”, do Stephen Chbosky. Não me sentia mais um garoto invisível, claro, mas a história de Charlie em muito me ajudou na superação de meus medos e preconceitos. Agora, quase uma década após a sua primeira leitura, o romance de Chbosky continua fazendo parte do meu TOP 5 de livros favoritos.

Felizmente, em paralelo a este meu processo de auto aceitação, tornou-se comum em nosso país a publicação de diversas outras obras com temáticas LGBTQIA+. Graças a esse movimento editorial que marca os anos 2010, posso afirmar que nunca antes me senti tão representado num livro como aconteceu enquanto lia “Me chame pelo seu nome”, de André Aciman. O “Um milhão de finais felizes”, do autor brasileiro Vitor Martins, me fez chorar por dias, pois em muitas de suas páginas parecia que a história de Jonas e a relação dele com a mãe era uma biografia não autorizada da minha vida e de como, no início, meus pais lidaram com a notícia de que sou gay. Mais recentemente, o “Homens Elegantes” do Samir Machado de Machado me fez rir, sonhar e, pela primeira vez, gostar de ler um romance de capas e espadas. Neste ano, Ocean Vuong com o seu “Sobre a terra somos belos por um instante” permitiu que eu fizesse uma das melhores jornadas literárias da minha vida de leitor.

Há, como vocês devem imaginar, diversos outros títulos LGBTQIA+ que me marcaram nos últimos anos, mas que não trago neste momento devido o texto já estar muito mais longo do que eu previra quando iniciei a sua escrita (um mal de historiador esse: há uma tendência em não conseguimos ser sucintos! rs). Para não me alongar ainda mais, contudo, gostaria de finalizá-lo dizendo que fico muito feliz ao perceber um movimento da literatura produzida e/ou publicada hoje no Brasil que possibilita que os jovens, adultos e idosos LGBTs possam cada vez mais se reconhecer nela. Pode parecer que não, mas a nossa sociedade, mesmo que vagarosamente e com muitas limitações, tem mudado para melhor no que tange questões ligadas à comunidade LGBTQIA+! Cabe a todos nós lutar para que este processo não seja, de alguma forma, interditado…

 

 

Victor Menezes

Historiador, Mestre em História Cultural pela Unicamp e criador

do curso “Harry Potter: Ficção e História” (Unicamp, 2017-21)

É ADM do ig @paraalemdehogwarts no Instagram

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