Lá não existe lá
por Kelvin Falcão Klein19 de dezembro de 2018
Um dos papéis fundamentais da literatura é o de apresentar novos mundos, novas vivências e experiências. O leitor muitas vezes avalia a qualidade da obra pela capacidade do livro de levá-lo a outros cenários, outras realidades – o centro de uma batalha em A cartuxa de Parma, de Stendhal, ou Guerra e paz, de Tolstói, por exemplo; ou ainda a vida de um indivíduo transformado em inseto, como em A metamorfose, de Kafka.
O romance Lá não existe lá, de Tommy Orange, pode certamente ser incluído nesse campo da ficção que leva o leitor em direção a outras visões de mundo. Membro das tribos Cheyenne e Arapaho de Oklahoma, nos Estados Unidos, Orange apresenta em seu romance uma história sobre a pluralidade das identidades e dos conflitos gerados pela identificação. A história é refratada em 12 destinos, 12 perspectivas de descendentes de indígenas – americanos nativos – que se encontram em um grande festival de música e cultura indígena na Califórnia.
Orage, contudo, tem plena consciência das armadilhas da identidade e da identificação, por isso seu livro não é nem didático nem esquemático. Os personagens têm falhas, dúvidas e incertezas – reconhecem que a sociedade estadunidense é racista e preconceituosa, mas reconhecem também que o fechamento em pertencimentos absolutos não é uma solução definitiva. Os personagens de Orange são convincentes justamente porque são falhos e em nada “absolutos”. Um deles, Edwin Black, diz o seguinte sobre sua jornada de autoconhecimento: “Por quantos anos eu morri de vontade de descobrir o que era a outra metade de mim? Quantas tribos inventei nesse ínterim, quando me perguntavam? Eu não sei como ser. Todos os jeitos possíveis que consigo conceber a mim mesmo dizendo que sou Nativo parecem errados.”
O mundo que Orange leva o leitor a conhecer – de modo fragmentado, mas profundo – é aquele das comunidades dos “americanos nativos”, descendentes de tribos indígenas que agora vivem nos centros urbanos, imersos na mesma contemporaneidade de tantos outros grupos étnicos. Acompanhamos o percurso dessas 12 pessoas até o ponto culminante das narrativas, o encontro no Powwow – evento em homenagem à cultura dos antepassados já totalmente absorvido pela cultura de mercado. O grande evento é um símbolo e uma condensação dos vários dilemas que Orange coloca na trajetória de seus personagens: “Índios fantasiados de Índios” é como Orvil Red Feather define os participantes da “Grande Entrada”, ponto alto da celebração.
O romance de Orange, portanto, é ao mesmo tempo extremamente contemporâneo e também tradicional, tocando temas caros ao presente e ao passado. Ao mesmo tempo que solicita uma ancestralidade – uma ideia de pertencimento tradicional, definido – nas trajetórias dos seus vários personagens, Orange também os posiciona em uma sociedade atual, diante de suas variadas demandas e problemas. É nessa contínua oscilação entre passado e presente que reside a força do romance de Orange e que explica seus melhores momentos: a vida complexa dos indivíduos ali retratados e suas lutas cotidianas em um espaço de tensão, mas também de alegria.
*Kelvin Falcão Klein é crítico literário e professor de literatura na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.