Eu, você e o cineasta que vai nascer: Aguirre e outras epifanias
por João Eduardo Veiga23 de junho de 2015

Pôsteres internacionais do filme “Eu, você e a garota que vai morrer” (2015), de Alfonso Gomez-Rejon
Eu, você e a garota que vai morrer, de Jesse Andrews, é um romance sobre perda e amadurecimento que, em meio a tudo isso, presta um belo tributo ao cinema e à imaginação. De maneira semelhante ao personagem de Jack Black em Rebobine, por favor, de Michel Gondry, os jovens Greg e Earl, protagonistas do livro recém-lançado pela Fábrica231, passam a criar versões caseiras de alguns dos filmes de que mais gostam. E assim surgem pérolas como Apocalypse later, Star peaces, Cat-ablanca, Hello, good-die (uma aventura do agente secreto James Bondage) e 2002.
Tudo começou porque não havia videogames na casa de Greg, o narrador da história. Como alternativa, ele e Earl, seu melhor (e único) amigo, encararam alguns jogos de tabuleiro, mas, nas palavras dele, “foi uma bosta”. Depois, enquanto o tédio persistia, destruíram alguns G.I. Joes e correram com pistolas de água atrás do gato. Então, numa busca frenética por qualquer diversão eletrônica, encontraram a coleção de DVDs do pai de Greg. E, na capa de um dos discos, se depararam com a foto de um homem com um elmo viking e olhar psicótico.
Era o ator Klaus Kinski em uma cena do emblemático Aguirre, a cólera dos deuses, de 1972, dirigido pelo alemão Werner Herzog durante uma temporada infernal na Amazônia. “Isso é coisa da boa”, gritou Earl. “Dá uma olhada nesse maluco!” A dupla imediatamente assistiu ao filme e seu dia a dia nunca voltou a ser o mesmo. “Isso acabaria sendo a coisa mais importante que já aconteceu em nossas vidas”, confessa Greg. “Foi incrível. Era engraçado e sinistro. (…) Nós adoramos tudo. Adoramos o fato de ser lento. Adoramos o fato de levar a eternidade. Na verdade, não queríamos que acabasse. Adoramos a selva, as jangadas, a armadura e os elmos ridículos. Adoramos que meio que parecia um filme caseiro, como se tudo realmente tivesse acontecido, e alguém na jangada tivesse uma câmera. Acho que, sobretudo, nós adoramos o fato de que não tinha final feliz para ninguém.” (E, não menos importante, “traz os primeiros peitos que eu vi”, conta.)
Dessa empolgação vieram a paixão pelo cinema e a vontade de empunhar uma câmera. Mas será que todo cineasta nasce de um instante de epifania? É bem provável que não. Até mesmo Quentin Tarantino, que descobriu sua vocação enquanto trabalhava como atendente em uma videolocadora, é incapaz de especificar o responsável pelo “estalo” – seu ranking de preferidos, inclusive, costuma mudar completamente de um dia para o outro. Há, porém, alguns diretores que conseguem rastrear seus Aguirres. E, muitas vezes, eles podem surpreender.
Cineasta-cinéfilo de uma geração anterior à de Tarantino e enciclopédia viva da sétima arte, Martin Scorsese ficou famoso por obras violentas sobre gângsteres e outros párias. Ele revela, no entanto, que descobriu sua aspiração pelo cinema após assistir com o pai, aos nove anos, a um filme sobre… balé. Mas era, vale dizer, um filme sobre balé sui generis em forma e conteúdo: o inglês Os sapatinhos vermelhos (1948), de Michael Powell e Emeric Pressburger, bem distinto dos musicais produzidos naquela mesma época em Hollywood. Havia algo de misterioso na caracterização dos personagens, no uso da cor, na fotografia, no movimento das cenas. Scorsese emprega o termo “visceral” para descrever o que viu na tela – e, aí sim, tudo passa a fazer sentido.
Frank Darabont, diretor de Um sonho de liberdade, drama favorito de muita gente, lembra que, ainda menino, em 1971, foi ao cinema ver um terror vagabundo, A irmandade de Satanás. Chegando lá, descobriu que se tratava de uma sessão dupla. A outra exibição seria de THX 1138, ficção científica obscura de um estreante chamado George Lucas – e com ela viveu a epifania definitiva. Se até ali seu conceito de cinema era muito abstrato, como se filmes fossem um tipo espontâneo de mágica, naquela hora ele teve a certeza de que por trás das lentes havia um artista querendo compartilhar sua visão de mundo com a plateia. E imediatamente desejou ser esse cara.
Já Danny Boyle conta que sua primeira experiência transcendente aconteceu por volta dos 14 anos, época em que vivia tentando entrar com os amigos em um cinema pornô de sua cidade. Certo dia eles conseguiram – e o filme em cartaz era Laranja mecânica, de Stanley Kubrick, que havia sido proibido para menores de 18 anos na Inglaterra por conta de uma série de controvérsias. Aquela tarde deixou marcas definitivas no rapaz, que descobriu que arte poderia ser tão interessante quanto sexo. Mas só quase uma década depois, com Apocalypse now, de Francis Ford Coppola, ele saiu do cinema decidido a batalhar por um espaço naquela indústria, conquistado anos mais tarde com os elogios da crítica a sua estreia (Cova rasa), o sucesso internacional do longa que veio em seguida (Trainspotting) e, enfim, em 2008, um Oscar (Quem quer ser um milionário?). Até hoje o clássico de Coppola é sua grande referência.
Independentemente de epifanias e de espectadores que acabaram por se tornar diretores profissionais, é incontestável a inclinação do cinema a mudar vidas. E não são apenas as obras-primas que têm esse poder. Em Eu, você e a garota que vai morrer, por exemplo, Greg e Earl fazem um filme para homenagear Rachel, que tem leucemia, e odeiam o resultado. Aliás, o sentimento vai um pouco além do ódio, eles têm certeza de que fizeram o pior filme do mundo. Rachel, por outro lado… bem, Rachel acha que a dupla não estava mesmo em seus momentos mais inspirados. Isso, entretanto, não pesa contra a força do cinema, responsável por dar sentido às existências dos garotos e tornar mais suportável a rotina de uma menina com câncer; isso pesa a favor de Eu, você e a garota que vai morrer, um romance absolutamente livre de pieguices. O autor Jesse Andrews, afinal, não toma o nome de Werner Herzog em vão.

Pôsteres internacionais do filme “Eu, você e a garota que vai morrer” (2015), de Alfonso Gomez-Rejon
João Eduardo Veiga é jornalista.