Entre conselhos e receitas, a inquieta e criativa colunista feminina Clarice Lispector

Por Dulcilia Schroeder Buitoni
11 de maio de 2018


Clarice Lispector como jornalista feminina? Essa outra personalidade da nossa grande escritora começa a aparecer mais. Além da curiosidade de conhecer seus textos em jornais, podemos descobrir indícios de sua inspiração para temas e personagens desenvolvidos em sua magnífica produção literária. É um trabalho de busca que já foi feito por pesquisadores acadêmicos, mas que também pode ser lido nas entrelinhas por qualquer leitor apaixonado pela sua escrita.

Trabalhando como jornalista, Clarice escreveu algumas reportagens na década de 1940, crônicas para diferentes jornais, mas aqui o que nos interessa é a sua atuação relativamente duradoura na imprensa feminina. Durante o ano de 1952, escrevia a página feminina Entre Mulheres no jornal semanal Comício com o pseudônimo de Tereza Quadros; entre 1959 e 1961, ela era Helen Palmer, autora da coluna Correio Feminino, no Correio da Manhã; e também foi ghost writer de Ilka Soares, titular da coluna Só para Mulheres, no Diário da Noite, em 1960 e 1961.

Não era uma colunista comum. Podia dar conselhos de beleza ou de bem-estar, mas sempre acrescentava um toque de surpresa, de inquietação, ou de reflexão. Lembro de um “você já tirou férias de você mesmo?”. Já nas suas primeiras páginas no Comício, ela já trazia um tom anticonvencional. Opinativo e boêmio, Comício era uma publicação fora do padrão da grande imprensa, criado e gerido por intelectuais, que o qualificavam como semanário independente. Nessa época, Clarice ainda era esposa de diplomata. Era o ano de 1952 e ela publicou o livro Alguns contos, que contém seis dos textos que, em 1960, comporiam Laços de família. A autoria oculta lhe dava mais liberdade de não ser a escritora que começava a ficar conhecida nos meios intelectuais. Podia escrever sem comprometer seu nome em produções menos valorizadas e fugir do peso de ser “intelectual”. Como jornalista feminina, ela podia exercitar uma escrita mais leve e descompromissada.

Na década de 1950, os cidadãos acostumavam-se com o cenário de redemocratização e com uma onda de urbanização, coincidindo com o início de um desenvolvimento maior na industrialização da imprensa brasileira, que se refletiu com mais intensidade nas revistas que estavam entrando em fase de produção industrial – principalmente as femininas e as chamadas ilustradas. Os jornais ainda custavam a modernizar-se no que diz respeito à forma e conteúdo. A maioria deles obedecia a velhos padrões, inspirados no jornalismo norte-americano. No tocante às seções femininas, os jornais estavam atrasados em relação às revistas. Suas seções eram pobres, sem imaginação, com diagramação e ilustração pouco trabalhadas. Eram colchas de retalhos que juntavam receitas de crochê, uma crônica ou poesia, culinária, conselhos de beleza, dicas de moda. O jornal O Estado de S. Paulo publicava às sextas-feiras uma página feminina, nesses moldes, desde 1940. Na década de 1950, transformar a seção feminina em suplemento foi uma necessidade criada pela urbanização crescente e também pela concorrência: em 25 de setembro de 1953, saía o primeiro número do seu Suplemento Feminino. Na apresentação, seriam tratados “o noticiário de modas, perfumes, cosmética em geral, chega-nos diretamente de Paris, assinado por conhecidos cronistas da imprensa parisiense. De lá, recebemos também colaborações avulsas cujos temas são da maior atualidade e atendem ao que pede a mulher moderna, pois tratam de educação, puericultura, psicologia etc”. Como se pode perceber, a influência estrangeira era grande. Os jornais do Rio de Janeiro também publicavam no mesmo estilo. No geral, as revistas femininas eram bastante “comportadas”, não tratando de temas polêmicos. Havia poucos temas de comportamento; matérias sobre sexo inexistiam.

Interessa-nos aqui ressaltar o trabalho de Clarice Lispector no semanário Comício, em 1952, que foi quando ela começou a trabalhar como colunista na imprensa brasileira. Sob o nome de Tereza Quadros, Clarice produzia textos próprios e também selecionava trechos de outros autores. Se de um lado ela confirmava o papel doméstico da mulher – dona de casa, esposa, mãe –, de outro acrescentava pitadas de questionamento e algumas pequenas provocações. A tese de Tânia Sandroni, apresentada há pouco tempo na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, aponta que a principal fonte para citações de Tereza Quadros foi O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, que havia sido publicado na França em 1949 e ainda não traduzido no Brasil – apenas em 1960 sairia o livro no Brasil. Clarice já tinha acesso à edição francesa e quis introduzir a novidade para as leitoras; traduzia trechos e publicava na página Entre Mulheres.

A colunista Clarice criava personagens, como uma “vizinha” que dava conselhos práticos de como lidar com problemas corriqueiros de limpeza ou arrumação de casa. Ao mesmo tempo, publicava trechos por ela traduzidos de autoras como Virginia Woolf e Katherine Mansfield. Por aí, vemos a sua preferência por divulgar escritoras que traziam reflexão sobre a condição feminina. Também escreveu algumas pequenas crônicas. Podemos dizer que toda essa produção como jornalista feminina funcionava como um laboratório para a escrita literária. A presença de subentendidos, de um tom irônico aqui e acolá, figuras que foram esboços para personagens de seus livros são rastros que vão aparecer na sua ficção.

Mesmo estando bastante conforme ao contexto da época, já vemos indícios de sua crítica ao estereótipo da mulher cuja realização se resumia à família, à maternidade, ao lar. O olhar sobre os papéis femininos com certeza forneceu cenas, rostos e temas para sua produção literária. É possível pinçar nos textos em meio a receitinhas domésticas e conselhos de vida prática a Clarice Lispector inquieta e inquietante.

Dulcilia Schroeder Buitoni é livre-docente em Jornalismo e professora titular da ECA-USP, onde trabalhou até 2005. Foi professora do Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero, de 2006 a 2015, e atualmente é professora do Mestrado Profissional em Produção Jornalística e Mercado da ESPM-SP. Autora dos livros “Mulher de Papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira” (Summus, 2009), “De volta ao quintal mágico: a educação infantil na Te-Arte” (Ágora, 2006), “Fotografia e jornalismo: a informação pela imagem” (Saraiva, 2011), entre outros.

TAGS: Clarice Lispector, Correio Para Mulheres,

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.
Campos obrigatórios são marcados *