Correspondência incompleta
por Flávio Izhaki e André de Leones27 de junho de 2014
Flávio Izhaki e André de Leones se antecipam à marcação e papeiam sobre Chile, lembranças, viagens no tempo e o Plano Verão
FLÁVIO IZHAKI: André, o que te lembra o Chile? Para mim lembra o Lula. Isso, o presidente. O Chile me lembra o Lula dentro de um elevador. Como toda memória, ainda mais na infância, ela vem num flash. Eu tinha 9 anos, estamos em janeiro de 1989. Foi a única vez em que estive no nosso falso vizinho. Era uma viagem de férias: meus pais, minha irmã e dois grupos de amigos (e pais) que moravam no nosso prédio. Estávamos hospedados num hotel no centro de Santiago que tinha uma piscina na cobertura. Foi a primeira vez que soube de um prédio com piscina em cima. Lembro que fiquei estupefato (tinha aprendido essa palavra naquela semana e vivia repetindo). Estávamos saindo da tal piscina. Eu devia estar sem camisa, talvez chupando um picolé, as mãos lambuzadas. O elevador parou num dos andares, ainda não o nosso, e o Lula entrou. Lembro que ele não estava sozinho, tinha outras pessoas com ele, todas de terno. Conversando seriamente. Decidindo o futuro do mundo. Eu já sabia quem era o Lula, minha mãe votava no PT e eu torcia por eles. Eu gostava da ideia de torcer por um partido político. Hoje em dia isso é impossível. Saímos no nosso andar e confirmei com os meus pais. Era o Lula. Dias depois o Sarney – que não era um dos engravatados no elevador, eu também conhecia o Sarney na época – lançou um novo plano econômico chamado Plano Verão e estragou parte da nossa viagem. Um dos pais do nosso grupo teve que voltar ao Brasil correndo.
ANDRÉ DE LEONES: Quando José Sarney, autor de Marimbondos de fogo, lançou o Plano Verão, eu estava lá em Silvânia, meu aniversário era dali a poucos dias e a única coisa de que me lembro é o meu irmão, meses depois, tendo de escrever um trabalho escolar a respeito (do plano, não do meu aniversário), as folhas almaço pautadas e preenchidas com sua letra gorducha e meio torta e a capa com o título, creio que ele usou um pincel atômico vermelho e a letra “A” de “PLANO” ficou grande demais. Se você pudesse voltar no tempo e parar à minha frente (eu por certo estarei deitado no tapete, diante da TV, assistindo a uma sequência saudabilíssima de desenhos animados) e me perguntar: “André, e o Chile?”, bem, eu primeiro levaria um susto filho da puta, um sujeito aparecendo assim do nada e falando com esse sotaque de dublador da Herbert Richers, caramba!, mas, uma vez tranquilizado (“Fui enviado por você mesmo e pela Cintia da Rocco, venho lá do futuro.”), eu provavelmente diria: “Que que tem o Chile?!” Depois de almoçar e vadiar um pouco, assistiríamos a Star Trek na TV Manchete, quando meu pai se juntaria a nós e lhe perguntaria, entusiasmado, sobre o futuro. Sabe, acho que meu pai é desses caras que acreditam no progresso e na evolução, que, apesar de tudo, caminhamos para algo melhor e melhor e melhor, seja o que for. Tem a ver com a religiosidade dele. Em 1989, a seleção chilena de futebol vinha de um vice na Copa América e de uma prata nos Jogos Pan-Americanos. Assim, ele não teria problemas para acreditar que, em 2014, numa Copa do Mundo disputada aqui mesmo, no Brasil, o Chile passou às oitavas atropelando a atual campeã do mundo (eis no que meu pai teria problemas para acreditar: que a Espanha ganhou uma Copa) e está prestes a enfrentar, de igual para igual, a seleção brasileira. Ele talvez lhe perguntasse, Flávio, se não poderia voltar com você para 2014, só pra dar uma olhadinha, sabe como é…
FLÁVIO: Antes que eu respondesse qualquer coisa, o seu Pedro de Leones sairia correndo para ver meu carro do De volta para o futuro estacionado nas ruas empoeiradas de Silvania. Mas eu não tenho um DeLorean, nem uma máquina de teletransporte como daquele filme A mosca. Aliás, como eu vim parar aqui, catzo? Você não está perdendo muita coisa, seu Pedro. Em 2014, a Copa é no Brasil, mas o torcedor brasileiro não sabe o que gritar. Desaprendemos a torcer. Mas nós temos um centroavante de bigode vistoso como o do Sarney e um craque que usa cabelo platinado para trás como um galinho de desenho animado. E quem são os outros jogadores?, ele haveria de perguntar. Ih, seu Pedro, os outros não contam muito, não. Nós jogamos um Neymar-bol (sim, o nome do nosso craque é Neymar e, em 2014, esse é um nome normal), bola no menino e deixa que ele resolve (pelo menos até agora). No que o seu pai falaria que o timaço que o Lazaroni estava montando para a Copa de 1990 parecia bem melhor. Eu daria um sorriso amarelo e responderia: pequeno André e seu Pedro, sentem-se um pouquinho no sofá. Então, na Copa de 1990…
ANDRÉ: E eu te interromperia, Flávio, pois não haveria nada que pudéssemos fazer, não seria bom interromper a ordem das coisas, antecipar nossos fracassos e triunfos, arrancar de nós tanto a alegria quanto a dor, de tal modo que acabaríamos fazendo as mesmas coisas: amargar o gol de Caniggia em 1990, conformar-se com o futebol pragmático de 1994, aceitar a decepção de 1998, festejar o pentacampeonato em 2002 e suportar da melhor maneira possível a mediocridade galopante desde então. Hoje, liguei para o meu pai. Aos 66 anos de idade, ele me parece confiante de que o Brasil passe pelo Chile, e não muito mais. Pedi que ele explicasse melhor seus prognósticos, mas a ligação foi arranhada por ruídos, lacunas e engasgues, de tal modo que não compreendi muito bem o que o meu velho prevê para a seleção brasileira. Ou, não sei, talvez sua previsão se resuma a isto: ruídos, lacunas e engasgues.
Criado no interior de Goiás, em Silvânia, André de Leones é autor de cinco livros, entre eles Como desaparecer completamente e Dentes negros, é colaborador do jornal O Estado de S.Paulo e torce para o Liverpool. Carioca, Flávio Izhaki é flamenguista e seu último romance, Amanhã não tem ninguém, é finalista do Prêmio Portugal Literatura de 2014.
Ao lado de Lielson Zeni e Túlio Pires Bragança, André e Flávio acompanham, com suas colocações estapafúrdias e análises descabidas, a Copa do Mundo de 2014 no blog Pelé Calado.