Clube da Luta Feminista: um caso de tradução aplicada

por Simone Campos
27 de março de 2018


Gostei tanto do Clube da Luta Feminista (Jessica Bennett) que, enquanto sofria triplamente como escritora-tradutora-doutoranda, repassava trechos traduzidos para minhas amigas: olha! a gente está passando por isso agora! Ou seja, eu comecei a aplicar o livro enquanto o traduzia.

Quem me conhece sabe que adoro soltar trocadilhos e piadas de tio, às vezes um tanto duvidosas. E o Clube da Luta Feminista era cheio dessas graças, que eu teria que traduzir e adaptar à realidade brasileira. Assim como as muitas expressões coloquiais e referências culturais.

Muitos dos termos já se popularizaram na internet. Mansplainer (homens explicando coisas que mulheres já sabem, tomando-as por burras), bropropriator (um homem se apropriar das palavras ou ideias de uma mulher), manterrupter (homens interrompendo mulheres, pois o que têm a dizer é tããão mais importante). Na mesma linha irreverente do livro, sugeri chamar Mansplainer de Expicador, bropropriator de Apropiroca e Manterrupter de Interruptomem. A revisão deixou no original, pois o público-alvo já está acostumado aos termos em inglês. Outras ficaram, como o Repentelho (Himitator, o sujeito que repete o que você diz e fica com o crédito) e o Desmalmado (Lacthater, o que não tem a menor empatia com mães).

A parte séria da proposta desse livro é você formar um grupo com as amigas para lutarem juntas, se ajudarem e dividirem experiências sobre o mercado de trabalho, mesmo que não tenham a mesma profissão. Além desse “grupo de apoio” feminista, o livro ensina técnicas práticas para derrotar o machismo sutil do mercado de trabalho, aliando-se a colegas e a derrotar também nossa própria tendência à autossabotagem – como a famosa “síndrome de impostora”, em que apesar de zilhões de qualificações e pessoas nos apoiando, nunca nos sentimos à altura da tarefa.

Outra aplicação que encontrei foi quando pedi a ajuda da preparadora de texto Mônica Surrage e da tradutora Stephanie Fernandes, parte do meu Clube da Luta, para aperfeiçoar os trocadilhos. Stephanie sugeriu Machocrata para traduzir Stenographucker, o sujeito que te trata como secretária mesmo que você seja a presidente da empresa – “faça o café”, “faça a ata da reunião” –, e ficou Machocrata mesmo.

Eu me diverti ao traduzir a parte sobre aprender o jargão esportivo dos brothers (p. 80-81), que contém um teste estilo Capricho para “vencê-los no próprio jogo”. As metáforas de futebol americano e beisebol foram adaptadas à realidade brasileira, ou seja, ficaram cinco de futebol, uma de basquete e uma de Fórmula 1. O que é “ganhar no tapetão” no mundo do trabalho? E “saber bater um escanteio”?

Um capítulo desafiador foi o que trata das formas de falar típicas das mulheres, “Aprendendo a falar bem” (p. 190). Uma seção relevante para a realidade brasileira trata do excesso de emojis e de mandar bjos e abs no fim de emails. No resto, várias referências a celebridades e filmes que felizmente são conhecidos no Brasil. O jeito laríngeo de falar da Kim Kardashian, o “tipo assim” das patricinhas de Beverly Hills (valley girls) e o uptalk (afirmar em tom de pergunta?) pegou nos Estados Unidos a ponto de merecer um capítulo só para ele. Os termos para se referir a isso eram bem raros por aqui, de forma que tive que pesquisar e ter muito jogo de cintura.

Tenho apreço especial pelo Dicionário de Dificuldades Machistas (p. 222), que lista termos depreciativos e problemáticos para a mulher e por que não gostamos deles. Cobradora, dramática, arrogante, mal-amada, antipática – quem nunca foi chamada disso, e às vezes nem pelas costas? Algumas coisas não se aplicavam, mas lendo a descrição consegui imaginar o que mais se aproximava na nossa cultura. Traduzi o condescendente termo “kiddo” como nosso diminutivo “inha” (queridinha, florzinha, mocinha, gracinha), e assim ficou.

Falei com a minha mãe, Sandra, sobre como o livro era útil e de algumas armadilhas para a mulher que ele denunciava. Ela ficou boquiaberta e começou a contar histórias pessoais que exemplificavam cada item: uma vez, antes de eu existir, seu chefe tentou roubar o crédito pelo projeto que ela idealizara (e ela não deixou, interceptando o supervisor dele na garagem. Vai, mãe!). Outro chefe sempre pedia para ela escrever a ata da reunião, e com isso ela participava bem menos. Contou também de uma chefe mulher que concedeu o aumento disponível na seção para um homem – justificando que estava preterindo a subordinada bem mais competente porque o homem era “pai de família”, enquanto que a mulher “não precisava” porque tinha um “marido médico” (!!!).

Logo no começo do Clube da Luta Feminista, Jessica Bennett diz que o machismo de hoje em dia é mais sutil do que o de antigamente. Bem, depois da eleição de Donald Trump, ficou difícil dizer isso, e ela achou por bem acrescentar um prefácio ao livro – dizendo que achou que estava fazendo uma caricatura quase retrô do sexismo, mas depois do presidente que falava em “agarrá-las pela vagina”, ela ficou atônita com o poder que o machismo ainda possui. Depois desse prefácio, escrito em março de 2017, ainda rolou o fabuloso movimento #metoo, que derrubou vários poderosos em Hollywood, como Harvey Weinstein, após acusações de assédio, estupro e violência contra a mulher. As acusadoras, no caso, estão entre as mulheres mais poderosas e bem-pagas do mundo e demoraram a falar por temerem pela própria carreira, reputação e segurança; imagine as que não são nada disso. O jeito, diz Jessica em seu prefácio, é admitir o problema e se juntar à luta coletiva contra toda forma de machismo – mas também de racismo, homofobia e xenofobia. Eu não podia concordar mais.

*Simone Campos é tradutora.

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