Chuvas de verão

por Bety Orsini
23 de fevereiro de 2015


foto cem veroes__1940_editada

“Até aquele verão eu desconhecia que não sabia o que era  amor. Meu coração já tinha batido tantas vezes, por rostos tão diferentes, mas só quando o encontrei é que percebi o que é exatamente esse sentimento mágico de que tanto falam, aquela pessoa que toma seu pensamento quando você acorda e quando coloca o rosto no travesseiro para dormir. Seu nome era Luís, mais banal impossível, e nos encontramos na praia por puro acaso. Eu estava sozinha e ele, simpaticamente, perguntou se poderia deixar suas coisas ao meu lado enquanto ia dar um mergulho. Naquela época eu tinha cabelos longos e negros e ele usava o seu, castanho claro, aparadinho como o dos soldados. Conversamos tanto, sobre tantas coisas, que não sentimos o tempo passar. Quando demos conta o sol já se punha tingindo de vermelho as montanhas lá no fundo. Nos despedimos sem trocar telefones mas, no dia seguinte, fui à praia no mesmo lugar. Alguns minutos depois ele chegou, meio sem graça, como se eu tivesse percebido que ele fora ali para ver se me encontrava.

A primeira noite de amor foi naquele dia. Fui para a casa  dele e a noite foi pequena para tanto sentimento. Nunca tinha experimentado isso antes, ele disse que também não, e de repente me senti a própria Julieta encontrando o seu Romeu. Dessa vez seria para sempre, tinha certeza. Contei meu passado amoroso, ele também, queríamos que daqui para frente a vida fosse uma tela em branco só com nossa história.

Tudo bem, até senti ciúme de sua última namorada, uma filósofa bem-sucedida, com um bom emprego, que morava no Ceará. Um belo dia, quando tínhamos combinado uma viagem de uma semana, ele surgiu com um trabalho imprevisto. Nem desconfiei. Só achei estranho quando me ligou do aeroporto do Ceará (onde sua ex então morava), antes de embarcar para Lisboa, onde era o tal compromisso. Lembro que me fez muitas declarações de amor. Como ia sentir a minha falta, que eu era a única mulher da sua vida, tudo que uma mulher crédula gosta de ouvir.

Mas alguma coisa ficou me torturando, logo o Ceará , que eu odiava por causa da outra? Uma amiga, esperta com histórias de traições, se ofereceu para ligar para o departamento onde a moça trabalhava e indagar sobre o seu paradeiro. Descobriu que a dita cuja fora passar uns dias em Lisboa e só estaria de volta em 15 dias, o mesmo tempo em que ele me disse que retornaria.

Eu, que já tinha terminado várias relações (outros tantos tinham terminado comigo), fiquei irada. Nunca tinha sido traída assim tão descaradamente. Me senti uma perfeita idiota. Sentei à máquina de escrever e escrevi uma carta para ele com as maiores ofensas, a mais branda delas dizendo que era uma pessoa sem caráter.

Recentemente, reencontrei-o num restaurante. Estava bem mais velho, um jeito cansado, e contou que tinha voltado para a primeira mulher. Mas meu coração  estava gelado como uma noite de inverno. Nada parecido com a quentura que tomava conta do meu corpo quando ficávamos juntos naquele verão. Desta vez eu tinha certeza de que aquele sentimento de antigamente nunca se transformaria em outra coisa. Tinha ido embora para sempre, como passam as chuvas de verão.

Com o tempo  fiquei imune às atrações de verão, não confio nelas, prefiro as da primavera, delicadas e mais suaves. Agora, na maturidade, sei que o verão é enganador, nos ofusca com sua festa de corpos e de luz. “

Dobrei a folha em que datilografei esta carta, o sol batendo inclemente em minhas costas, coloquei na grande sacola de palha que costumo levar para a praia e dela tirei um presente de aniversário que ganhei de uma  amiga, ainda embrulhado. Quando abri o pacote não acreditei no que li. Era o livro  Cem verões, de Beatriz Williams, a história de um amor perdido que o tempo recuperou. Era um sinal, não tive dúvidas. É preciso sempre dar mais uma chance para as esperanças que vem com o verão.

Bety Orsini é jornalista e escritora. Dela, a Rocco publicou Cartas do coração e Minha vida com mamãe.

 

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