Cerveja, família e literatura
Os autores André de Leones e Maurício de Almeida batem um papo de bar15 de abril de 2016
Maurício de Almeida cresceu em Campinas, mas agora vive em Brasília, onde foi trabalhar na Funai. André de Leones cresceu em Goiás, mas hoje mora em São Paulo, na Moóca, onde costuma assistir a jogos do Juventus na rua Javari. Um trocou o sudeste pelo centro-oeste, o outro, o contrário. Mas essa coincidência não é a única que há entre os dois autores.
Tanto André quanto Maurício apareceram para a literatura, de fato, após vencerem o Prêmio Sesc para jovens autores – este em 2008 com Beijando Dentes, aquele em 2006 com Hoje Está um Dia Morto. Há algumas semanas ambos colocaram livros novos na praça: Abaixo do Paraíso é a sexta obra do goiano, enquanto A Instrução da Noite é o segundo trabalho publicado do paulista. Apesar de extremamente diferentes, os dois livros possuem alguns pontos de contato, tais quais seus autores. A família, por exemplo, têm lugar central em ambas narrativas. Outra semelhança? A cerveja aparece com frequência nas mãos e bocas de personagens das duas histórias.
Foi a bebida que acompanhou o papo que tive com Maurício e André no Café Creme, um dos bares mais tradicionais da Avenida Paulista, em São Paulo. Na bebida, inclusive, mora uma esperança. “A cerveja pode salvar o país, se ao invés das pessoas se xingarem e se agredirem sentarem para tomar uma cerveja”, diz André entre um assunto e outro, quando, inevitavelmente, passamos pelo momento político que o país vive.

Da esquerda para direita: André de Leones, Rodrigo Casarin e Maurício de Almeida
Literatura contra a crise
Maurício: Brasília está tão acirrada quanto o resto do país, com pessoas sendo xingadas na rua só por usar vermelho. Vivemos uma situação complicada e muito complexa que não pode ser lida em termos de simples oposições. Acho que se consumíssemos mais literatura, tivéssemos mais instrução, não cairíamos tão facilmente na leitura simplória do que está acontecendo. Trata-se em grande medida de uma disputa simbólica que tende a simplificar questões complexas por interesses escusos. É mais fácil incitar e manobrar a raiva, por exemplo, do que responder a questões. Acredito que, se houvesse uma educação de base consistente (que consequentemente resultaria em uma população de leitores maior, entre outras coisas), as pessoas não cairiam tão fácil no maniqueísmo.
André: Eu acho que não, discordo, penso na Alemanha, o país que alicerça o pensamento Ocidental, junto com a Grécia, e promoveu a maior atrocidade da história. A cultura não evita a barbárie, necessariamente. O que se pode fazer é representar, refletir sobre, mas a literatura é muito lenta nesse sentido. O metabolismo criativo só possibilita que a gente faça literatura sobre o que acontece algum tempo depois.
Política
André: Muita gente fala do aspecto político que há no meu livro por conta do personagem, mas o que me levou a criá-lo não vem de agora. Remete a algo que sempre houve no Brasil, desde a carta do Caminha, que pede ao rei um emprego para o cunhado ou coisa que o valha. Só que, no Brasil, demora muito para falarmos, refletirmos sobre alguns assuntos, e às vezes isso nem acontece. Não me lembro de um grande romance sobre 1992, Collor, a Geração Cara-pintada, por exemplo. Aqui tudo se acomoda, tudo é anistia geral, logo é esquecido, ignorado. Falando especificamente de Abaixo do paraíso, o que me deu subsídio para criar o protagonista são coisas de que fiquei sabendo entre os 9 e os 15 anos de idade, em uma cidade de dez mil habitantes no interior de Goiás. Nada vem de agora. Essa merda sempre esteve aí, em toda parte.

‘Abaixo do Paraíso’ é a história de Cristiano, um faz-tudo do esquema político de Goiânia. Trabalho escuso e, quase sempre, ilícito.
Família
Maurício: É uma matéria-prima muito rica. Hoje tem a discussão do que é uma família e, dentre inúmeras razões que justificam essa discussão, sem dúvida um fato importante é a arbitrariedade da família “tradicional” e os radicalismos que são realizados para a manutenção dessa instituição. Minha literatura ainda está dedicada àquela família tradicional justamente por insistir em carregar seus problemas e se matar para tentar resolver e contorná-los – ou contorná-los. É sempre muito violenta essa história, é difícil se relacionar em família, pois nunca é harmônica, por mais que às vezes se pareça com aquela da margarina. Diz bastante sobre o que você é e sobre a maneira que você se relaciona com o mundo. No meu livro o pai acaba implodindo a família, que é uma coisa te dá base a tira a base também.
André: Concordo com o Maurício. A ideia do meu livro era mostrar um cara totalmente deslocado, apartado da família, com a mãe morta, um trabalho ilícito, e que em um dado momento precisa voltar para a casa do pai, que por sua vez se casou com outra, com quem já tem uma filha. O protagonista precisa, de alguma forma, se readequar, aprender a conviver com todas essas mudanças e, ao mesmo tempo, consigo mesmo, com o que fez, pois a razão do retorno é um crime que ele comete. E claro que as coisas não são fáceis ou sequer conclusivas.

A instrução da noite, romance sobre o vazio e as frustrações nas relações familiares e a busca por um sentido que nunca é alcançado
Mercado para literatura
André: Tem muita editora pequena fazendo um trabalho bacana com autores novos. Há saídas que não existiam há dez anos, quando ganhei o prêmio Sesc, mas sempre foi difícil e vai continuar sendo. Há um problema mais fundacional, por assim dizer, que tem a ver com o nosso péssimo sistema educacional, que praticamente não existe, forma poucos leitores. Ele mais deforma do que forma, na verdade.
Fora eixo
André: O eixo existe, claro, as maiores editoras estão em São Paulo e no Rio, algumas poucas em Minas, Porto Alegre e Curitiba. Em Goiás, tem muito poeta bom, mas poesia, em qualquer lugar, a forma de publicar é um tanto alternativa. Há também a autores com uma narrativa urbana bem acentuada, até diferente do que eu faço, que se passa em grande parte no interior.
Maurício: Em Campinas eu não sentia diferença, estava perto de São Paulo, mas em Brasília parece que estou em outro planeta. Lá não tem uma cena de literatura, é tudo fragmentado, nada que mobilize autores e crie espaços para discussão e divulgação de obras que ultrapassem o Planalto Central e cheguem no Sudeste, onde estão as maiores editoras, eventos etc. Difícil encontrar e reunir autores para chamar atenção para alguma coisa que aconteça por lá.
Influências contemporâneas
André: Para falar só de autores vivos, e dos que me ocorrem agora, curto Luiz Ruffato, Adriana Lisboa, que acho a melhor prosadora da sua geração, Dalton Trevisan, Sérgio Sant’Anna, Flávio Izhaki, Rubem Fonseca, Fernando Monteiro, Simone Campos, Luis Krausz, Carola Saavedra, Maira Parula, Luisa Geisler, … ah, Tadeu Sarmento, do Recife, é um puta escritor, também. Aliás, voltando à nossa eterna crise política, o Tadeu diz uma coisa tão verdadeira quanto engraçada: “Brasília é Las Vegas funcionando em um leprosário repleto de psicopatas”. Acho uma descrição muito acurada.
Maurício: Também curto muito o Flávio Izhaki, o Rafael Gallo, que gostei muito do último livro, descobri recentemente o Paulo Scott, curti o Habitante irreal. São autores que trabalham essa questão da família, mas a partir de perspectivas e interesses bastante diversos. Tem muita gente bacana escrevendo por aí.
Prêmio Sesc
André: O prêmio Sesc me deu uma carreira. Antes eu já escrevia, mas não sabia nem por onde começar quanto a procurar editora etc. A ideia de publicar era o que os caras fazem em Goiás, onde morava, que era ganhar alguma premiação da prefeitura ou do governo estadual, ter uma tiragem de mil exemplares e levar tudo para casa. O Prêmio Sesc então me deu uma carreira mesmo. Para quem não tem livro publicado, é a melhor possibilidade, o melhor lugar por onde começar.
Maurício: Quando você ganha um prêmio desse percebe que talvez esteja fazendo algo certo, mesmo já tendo escrito outras coisas. Acaba trazendo uma consolidação como escritor, até por ter um livro publicado por editora grande. Quando o prêmio saiu, fui pego de surpresa, era algo inesperado e que, afinal, aconteceu no início mesmo de minha carreira. A vivência do prêmio, os festivais e eventos que participei, as pessoas que conheci e outras tantas coisas foram um aprendizado e tanto. Além de tudo, o prêmio serviu para que consolidasse uma consciência daquilo que fazia – mas nenhum processo assim é rápido, por isso que demorou para sair esse novo, que é o meu segundo.