Carta aos leitores: II

por Lúcia Bettencourt
15 de outubro de 2015


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[Foto do arquivo pessoal da autora Lúcia Bettencourt]

Queridos leitores.

Depois de ter me apaixonado pelas circunstâncias da vida – ou da morte – de Rimbaud, comecei a escrever o romance com muita velocidade, quase um desabafo, numa tentativa de fazer um acerto de contas com coisas que considerava injustas. Livro começado, recebi o convite para duas viagens que muito influenciaram o andamento da obra. Numa, fui para a França, para um congresso.  E, no final do mesmo ano, fui conhecer o deserto, no Marrocos.

Na primeira viagem, já que estava na França, decidi que devia visitar Charleville, a cidade que não logrou cativar seu mais famoso filho. Uma curiosidade: os habitantes de Charleville chamam-se carolopolitanos ou carolopolitains, na língua de Racine.  Imaginem o jovem rebelde tendo que admitir que era um carolopolitano! Melhor fugir para Paris e dizer-se parisiense, não? Mas fui para lá, emocionada, e entendi por que Rimbaud saiu de sua cidade natal tantas vezes, mas depois, regressou, e regressou e regressou.

O-regressoCharleville foi fundada no século XVII, pelo duque de Nevers, Charles de Gonzague, cuja estátua se eleva, altaneira, não na praça Ducal, cujas semelhanças com a praça de Voges, em Paris, se devem ao fato de que foi planejada por Clément Métezeau, irmão de Louis, o construtor da praça parisiense. A estátua está na rua principal, antiga rua de Thiers, onde fica localizada a casa onde nasceu o “poeta explorador”. O título é estranho, mas é assim mesmo que aparece na placa que identifica o prédio, de três andares, onde, segundo a lenda, ainda antes que a parteira tivesse tido a chance de limpá-lo dos vestígios do nascimento, o bebê laboriosamente se arrastou pelo chão, em sua primeira tentativa de fuga.

Seguindo-se por essa rua, chega-se à famosa praça, ampla, quase exageradamente grandiosa, e vazia. Alguns carros estacionados. Restaurantes muito simples, mas servindo comida saborosa; um carrossel sempre fechado, envolto em lona, indiferente ao meu desejo. Do lado de lá, ao final da rua, um belo prédio construído em pedras amarelas, sobre o rio Meuse. Em francês, os rios são femininos, e a gente entende bem isso ao olhar as águas preguiçosas de La Meuse, que se enfeitam de folhas, na falta de flores num verão enevoado e quase frio. Ali era o antigo moinho, que hoje é o Museu Rimbaud. Um museu estranho, cujo acervo é quase todo feito de cópias e reproduções. Originais, e belos, apenas os pouquíssimos objetos pessoais trazidos por Rimbaud em sua última viagem. Uma mala, duas mantas, alguns livros (manuais, nada de Literatura) e os talheres que ele usava no Harrar. De resto, muitas fotos e fotocópias. E o busto feito por seu cunhado e primeiro biógrafo, Paterne Bérrichon. Uma montagem fotográfica nos revela o poeta em toda sua altura: 1,80m.

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Objetos de Arthur Rimbaud [Foto do arquivo pessoal da autora Lúcia Bettencourt]

Na rua que margeia o rio, à esquerda, fica a casa onde o poeta viveu durante seis anos. Trata-se de um outro museu, La Maison D’Ailleurs, a casa de outro lugar, numa tradução meio mambembe. Foi o museu mais estranho que já visitei na vida: uma casa inteiramente vazia. Numa primeira saleta, sons de um trem antigo. Nas outras, projeções nas paredes, letras, luzes, flashes. Num dos cômodos, a imagem de uma rua de Harrar, onde vemos um homem negro, de costas, se afastando, carregando nas costas uma grande saca de café. Das persianas do que dizem ter sido  (provavelmente) o quarto de Arthur, vemos não a rua e o rio, mas o pátio e a pequena latrina, onde dizem que ele se trancava e gritava, vezes sem conta, a palavra Merde! A roqueira Patti Smith foi até lá e filmou-se lá dentro, repetindo os gritos de seu mestre (assista abaixo a um vídeo de Patti Smith na casa).

Seguindo a rua na direção contrária, chega-se ao pátio do colégio onde Rimbaud se destacou, tendo ganhado todos os prêmios. Hoje, em frente ao prédio, há uma estátua sua, (des)calçando as botas, cabelos crescidos demais, despenteados. Atravessei a rua e desci por entre árvores e mato até a beira d´água. Ali, amarrado num galho, já meio submerso, um bote me deixou emocionada. Foi talvez um barco assim, esquecido, já meio apodrecido, que inspirou o jovem que ainda nem tinha 16 anos a escrever um dos mais belos poemas que se conhece: O barco bêbado, ou O barco ébrio.

A ida a Charleville já tinha valido a pena. Mas ainda não estava completa.

 

Lúcia Bettencourt é escritora e ensaísta. Recebeu o Prêmio SESC por seu livro de contos A secretária de Borges (Record, 2005), o prêmio de ensaio da Academia Brasileira de Letras pelo volume O Banquete: uma degustação de textos e imagens (Vermelho Marinho, 2012), além dos prêmios Josué Guimarães e Osman Lins pelas histórias depois incluídas em Linha de Sombra (Record, 2008). O regresso é sua estreia na Rocco.

Leia também:
Carta aos leitores: I, por Lúcia Bettencourt.

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