Atwood sobre o que significa O conto da Aia na era Trump

Autora fala também sobre o processo de escrita do livro
18 de agosto de 2017


Na primavera de 1984 comecei a escrever um romance que de início não se chamava The Handmaid’s Tale (O conto da Aia). Escrevi à mão, principalmente em blocos amarelos tamanho ofício, depois transcrevi meus rabiscos quase ilegíveis numa enorme máquina de escrever de teclado alemão que eu havia alugado.

O teclado era alemão porque eu morava em Berlim Ocidental, ainda cercada pelo Muro de Berlim: o império soviético ainda estava fortemente instalado e só viria a se esfacelar cinco anos depois. Todo domingo, a força aérea da Alemanha Oriental soltava estrondos sônicos para nos lembrar do quanto estávamos próximos. Durante minhas visitas a vários países atrás da Cortina de Ferro — Tchecoslováquia, Alemanha Oriental — vivi a desconfiança, a sensação de ser espionada, os silêncios, as mudanças de assunto, os meios oblíquos com que as pessoas podiam transmitir informações e isso teve influência no que eu escrevia. Assim como as construções adaptadas. “Antigamente isto pertencia a… mas eles desapareceram.” Ouvi histórias assim muitas vezes.

Tendo nascido em 1939 e adquirido consciência durante a Segunda Guerra Mundial, eu sabia que ordens estabelecidas podiam desaparecer da noite para o dia. A mudança também pode ser rápida como um relâmpago. “Não pode acontecer aqui” não é confiável: qualquer coisa pode acontecer em qualquer lugar, dependendo das circunstâncias.

Em 1984, eu evitava meu romance havia um ou dois anos. Parecia-me uma aventura arriscada. Lia muita ficção científica, ficção especulativa, utopias e distopias desde meus anos do secundário na década de 1950, mas nunca havia escrito um livro desses. Estaria eu preparada para isso? A forma era cheia de armadilhas, entre elas a tendência à pregação, uma guinada para a alegoria e a ausência de plausibilidade. Se era para criar um jardim imaginário, eu queria que os sapos presentes nele fossem reais. Uma de minhas regras era que eu não colocaria nenhum evento no livro que já não tivesse acontecido no que James Joyce chamou de o “pesadelo” da história, nem nenhuma tecnologia que já não estivesse disponível. Nenhuma bugiganga imaginária, nenhuma lei imaginária, nem atrocidades imaginárias. Deus está nos detalhes, é o que dizem. O diabo também.

Em 1984, a principal premissa parecia — até para mim — francamente absurda. Seria eu capaz de convencer os leitores de que os Estados Unidos tinham sofrido um golpe que transformou uma antiga democracia liberal em uma ditadura teocrática de mentalidade muito limitada? No livro, não existem mais a Constituição e o Congresso: a República de Gilead tem como base as raízes puritanas do século XVII, sempre presentes por baixo da América atual que pensamos conhecer.

A localização imediata do livro é Cambridge, Massachusetts, lar da Universidade Harvard, atualmente uma importante instituição liberal de ensino, mas no passado um seminário teológico puritano. O Serviço Secreto de Gilead é sediado na Biblioteca Widener, em que passei muitas horas em meio às pilhas de livros, pesquisando meus ancestrais da Nova Inglaterra e os julgamentos das bruxas de Salem. Será que algumas pessoas se sentiriam afrontadas pelo uso das paredes de Harvard como área de exposição para os cadáveres dos executados? (Elas se sentiram.)

No romance, a população encolhe devido a um ambiente tóxico e é rara a capacidade de ter filhos viáveis. (No mundo real de hoje, estudos mostram um declínio acentuado na fertilidade dos homens chineses.) Nos totalitarismos — ou, na verdade, em qualquer sociedade de hierarquias acentuadas — a classe governante monopoliza o que tem valor, e assim a elite do regime dispõe das mulheres férteis, designadas a eles como Aias. O precedente bíblico é a história de Jacó e as duas esposas, Raquel e Lea, e suas duas servas. Um homem, quatro mulheres, 12 filhos homens — porém as servas não podiam reclamar seus filhos. Eles pertenciam às respectivas esposas.

E assim a história se desenrola.

Quando comecei O conto da Aia, ele se chamava Offred, nome de sua personagem central. É composto de um nome de batismo masculino, “Fred”, e um prefixo que denota “pertencente a”, e assim corresponde ao “de” no francês ou “von” no alemão, ou ao sufixo “son” em sobrenomes de língua inglesa, como Williamson. Neste nome, está oculta outra possibilidade: “offered”, que denota uma oferenda religiosa ou uma vítima oferecida em sacrifício.

Uma pergunta que costumavam me fazer é por que nunca sabemos o verdadeiro nome da personagem central. Porque, respondo, muita gente por toda a história teve seus nomes modificados, ou simplesmente desaparecidos. Alguns deduziram que o verdadeiro nome de Offred é June, porque, de todos os nomes sussurrados entre as Aias no ginásio/dormitório, “June” é o único que não volta a aparecer. Não foi esta minha ideia original, mas cai bem, e assim os leitores podem adotar, se é o que desejam.

Na época de sua redação, o nome do romance mudou para O conto da Aia, em parte numa homenagem aos Contos de Canterbury, de Chaucer, mas em parte também como referência aos contos de fadas e ao folclore: a história contada pela personagem central comunga — para os ouvintes posteriores ou distantes — do inacreditável, do fantástico, como fazem as narrativas daqueles que sobreviveram a acontecimentos traumáticos.

Com o passar dos anos, O conto da Aia assumiu muitas formas. Foi traduzido para cerca de quarenta línguas. Foi adaptado para o cinema em 1990. Foi uma ópera e também um balé. Está sendo transformado em uma graphic novel. E em abril de 2017 se tornará uma série de televisão da MGM/Hulu.

Nesta série, tenho uma pequena participação especial. A cena é aquela em que as Aias recém-recrutadas sofrem lavagem cerebral numa espécie de instalação de reeducação da Guarda Vermelha conhecida como o Centro Vermelho. Elas devem aprender a renunciar a sua identidade anterior, conhecer seu lugar e seus deveres, entender que não têm direitos reais, mas serão protegidas até que se conformem, e depreciar tanto a si mesmas que aceitarão o destino designado e não se rebelarão, nem fugirão.

As Aias sentam-se em roda, com as Tias equipadas com armas de choque, obrigando-as a se juntar ao que agora (mas não em 1984) é chamado slut-shaming de uma delas, Jeanine, esta obrigada a contar do estupro coletivo sofrido quando adolescente. Sua culpa, ela as conduz — este é o cântico das outras Aias.

Embora fosse “apenas um programa de televisão”, embora houvesse atrizes que estariam rindo no intervalo para o café e eu mesma “só estivesse fingindo”, achei esta cena terrivelmente inquietante. Era parecida em demasia com a história real. Sim, mulheres se unirão contra outras mulheres. Sim, elas acusarão outras de evitar as responsabilidades: vemos esta pesada publicidade na era das redes sociais, que permitem a formação de grandes frentes unidas. Sim, elas assumirão de bom grado posições de poder sobre outras mulheres e até — e talvez particularmente — em sistemas em que a totalidade das mulheres tem pouco poder: todo poder é relativo e, em tempos difíceis, um poder qualquer é visto como melhor do que nenhum. Algumas Tias controladoras são crentes verdadeiras e penso que fazem um favor às Aias: pelo menos não lhes ordenaram que limpassem o lixo tóxico e pelo menos neste admirável mundo novo elas não foram estupradas, não tanto, não por estranhos. Algumas Tias são sádicas. Algumas são oportunistas. E são capazes de assumir parte dos objetivos declarados do feminismo de 1984 — como a campanha contra a pornografia e uma segurança maior contra a agressão sexual —, desvirtuando-os em proveito próprio. É como eu digo: a vida real.

O que me leva a três perguntas que fiz com frequência.

Primeira, será O conto da Aia um romance “feminista”? Se quer dizer com isso um tratado ideológico em que todas as mulheres são anjos e/ou tão vitimizadas ao ponto da incapacidade de escolha moral, não. Se quer dizer um romance em que as mulheres são seres humanos — com toda a variedade de caráter e comportamento implicada nisto — e são também interessantes e importantes, e o que acontece com elas é fundamental para o tema, a estrutura e a trama do livro, então, sim. Neste sentido, muitos livros são “feministas”.

Por que interessantes e importantes? Porque as mulheres são interessantes e importantes na vida real. Elas não são uma consideração a posteriori da natureza, não são participantes secundárias do destino humano e toda sociedade sempre soube disto. Sem mulheres capazes de dar à luz, as populações humanas desapareceriam. Por isso há muito tempo o estupro em massa e o assassinato de mulheres, meninas e crianças têm sido características de guerras genocidas e de outras campanhas que pretendem submeter e explorar uma população. Mate seus bebês e os substitua pelos próprios, como fazem os felinos; obrigue as mulheres a terem filhos que elas não poderão criar, ou filhos que você depois retirará delas para seus próprios fins, filhos roubados — este tem sido um tema difundido e antigo. O controle das mulheres e dos bebês tem sido uma característica de cada regime repressor do planeta. Napoleão e sua “bucha de canhão”, a escravidão e seu comércio humano sempre renovado — ambos se encaixam aqui. Aqueles que promovem o parto forçado devem se perguntar: Cui bono? Quem lucra com isso? Às vezes um setor, às vezes outro. Sempre há alguém.

A segunda pergunta que surge com frequência: será O conto da aia antirreligião? Mais uma vez, depende do que você entende por isso. É verdade que um grupo de homens autoritários toma o controle e tenta restaurar uma versão extrema do patriarcado, em que as mulheres (como os escravos americanos do século XIX) são proibidas de ler. Além disso, elas não podem controlar dinheiro nem ter empregos fora de casa, ao contrário de algumas mulheres na Bíblia. O regime usa símbolos bíblicos, como qualquer regime autoritário sem dúvida faria se tomasse o poder na América do Norte: não seriam comunistas, nem muçulmanos.

Os trajes modestos usados pelas mulheres de Gilead decorrem da iconografia religiosa ocidental — as Esposas vestem o azul da pureza, da Virgem Maria; as Aias vestem vermelho, do sangue do parto, mas também de Maria Madalena. Além disso, é mais fácil ver o vermelho se por acaso você estiver fugindo. As mulheres de homens inferiores na escala social são chamadas de Econoesposas e vestem listrado. Devo confessar que as toucas que escondem o rosto não vêm dos trajes de meados da era vitoriana ou das freiras, mas da embalagem do produto de limpeza Old Dutch Cleanser dos anos 1940, que mostrava uma mulher de rosto oculto e me apavorava quando criança. Muitos totalitarismos usaram o vestuário, tanto proibido como forçado, para identificar e controlar as pessoas — pensem nas estrelas amarelas e na púrpura romana — e muitos governaram por trás de uma fachada religiosa. Isto facilita muito a criação de hereges.

No livro, a “religião” dominante avança para tomar o controle doutrinário e denominações religiosas que nos são conhecidas sofrem aniquilação. Assim como os bolcheviques destruíram os mencheviques com o fim de eliminar a concorrência política e facções da Guarda Vermelha lutaram entre si até a morte, os católicos e batistas são visados e eliminados. Os quacres foram para a clandestinidade e tomam uma rota de fuga para o Canadá, como — suspeito — eles fariam. A própria Offred tem uma versão particular do Pai Nosso e se recusa a acreditar que este regime foi ordenado por um deus justo e misericordioso. No mundo real da atualidade, alguns grupos religiosos lideram movimentos para a proteção de grupos vulneráveis, inclusive mulheres.

Deste modo, o livro não é “antirreligião”. É contra o uso da religião como fachada para a tirania; isto é inteiramente diferente.

Será O conto da Aia uma previsão? Esta foi a terceira pergunta que me fiz — cada vez mais, forças na sociedade americana tomam o poder e promulgam decretos incorporando o que elas diziam querer fazer já em 1984, quando eu escrevia o romance. Não, não é uma previsão, porque prever o futuro na verdade não é possível: existem demasiadas variáveis e possibilidades imprevistas. Digamos que é uma antiprevisão: se este futuro puder ser descrito em detalhes, talvez não vá acontecer. Porém, também não podemos depender de tal quimera.

Tantos fios diferentes tecem O conto da aia — execuções coletivas, leis suntuárias, queima de livros, o programa Lebensborn da SS e o roubo de filhos por parte dos generais argentinos, a história da escravidão, a história da poligamia americana… a lista é longa.

Mas existe uma forma literária que ainda não mencionei: a literatura testemunhal. Offred registra sua história o melhor que pode; ela então a esconde, confiando que poderá ser descoberta, no futuro, por alguém livre para compreendê-la e compartilhá-la. Este é uma ato de esperança: toda história registrada implica um futuro leitor. Robinson Crusoé mantém um diário. Assim como Samuel Pepys, em que fez a crônica do Grande Incêndio de Londres. Como fizeram muitos que viveram durante a Peste Negra, embora seus relatos costumem ter um fim abrupto. Como fez Roméo Dallaire com a crônica do genocídio em Ruanda e a indiferença do mundo a ele. Como fez Anne Frank, escondida em seu anexo secreto.

São dois os públicos leitores para o relato de Offred: aquele no final do livro, em uma conferência acadêmica no futuro, que são livres para ler, mas nem sempre mostram a empatia que se desejaria deles; e o leitor individual do livro em qualquer época. Este é o leitor “verdadeiro”, o Querido Leitor para quem escreve todo escritor. E muitos Queridos Leitores se tornarão, por sua vez, escritores. Foi assim que nós, escritores, começamos: lendo. Ouvimos a voz de um livro falando conosco.

Na sequência das recentes eleições norte-americanas, proliferaram temores e angústias. Consideram-se as liberdades civis básicas em risco, junto com muitos direitos que as mulheres conquistaram nas últimas décadas, na realidade nos últimos séculos. Neste clima desagregador, em que o ódio por muitos grupos parece estar em ascensão e o desprezo pelas instituições democráticas é expresso por toda sorte de extremistas, é certo que alguém, em algum lugar — muitos, eu poderia conjecturar — escreve o que acontece agora segundo sua própria experiência. Ou eles se lembrarão e farão os registros mais tarde, se puderem.

Será que suas mensagens serão suprimidas e escondidas? Serão encontradas, séculos depois, em uma casa antiga, atrás de uma parede?

Vamos torcer para que não chegue a esse ponto. Confio que não chegará.

Texto traduzido a partir de artigo do The New York Times de março de 2017.

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