Às margens do cânone

O curador Miguel Conde escreve sobre a coleção Marginália
24 de maio de 2017


Talvez como compensação por tudo nessa fase da vida que fica um tanto fora da ordem, na adolescência eu gostava de fazer e consultar listas que me permitissem organizar meus interesses segundo a tranquilizadora hierarquia ordinal dos rankings. Não era tanto uma questão de estabelecer prioridades para utilizar melhor meu tempo, pois àquela altura o tempo não era ainda artigo em falta ou que fosse um dia terminar. Listas eram antes um modo a mais de gastar esse tempo que parecia inesgotável, com a atração particular de arrumarem um pouco aquilo que, em outras frentes, tendia à entropia.

Reconfortante acreditar que se podia estabelecer de maneira indubitável que o time com o maior número de campeonatos brasileiros era o Flamengo, o melhor romance da literatura brasileira era Dom Casmurro, o filme mais importante da história, Cidadão Kane, o melhor disco de rock de todos os tempos, Sgt Pepper’s. Antes que surgissem os primeiros motivos de dúvida quanto às demais convicções (Lavoura arcaica, do Raduan Nassar, qualquer coisa do Stanley Kubrick, o Nevermind do Nirvana), as muitas discussões na escola depois do título de 1992 (o Flamengo tinha sido tetra ou penta? valia o brasileiro de 1987?) foram minha primeira lição de que mesmo questões em aparência objetivas podiam admitir controvérsias intermináveis.

Apesar disso, por muitos anos ainda me parecia importante e possível afirmar categoricamente que Fitzgerald era melhor que Hemingway, Truffaut do que Godard, Stendhal do que Balzac, além de não haver vergonha nenhuma em querer encurtar uma polêmica em sala de aula perguntando ao professor na faculdade quem afinal tinha razão a respeito do funcionamento do capitalismo: Weber ou Marx? Não tenho a menor dificuldade em entender o russo que há alguns anos, disseram as agências de notícias, assassinou um amigo com quem discutia o que era melhor, prosa ou poesia.

Felizmente, como também nos assuntos humanos costuma prevalecer a lei termodinâmica da tendência geral à entropia, num momento qualquer minhas próprias ressalvas às médias resultantes do cotejo geral das opiniões alheias se acumularam até um ponto de não-retorno. Entendi que listas são pretextos divertidos de discussão e balizas culturais importantes, mas que uma opinião inteligente e inesperada, ainda que idiossincrática ou até mesmo por causa disso, tem muito mais interesse do que qualquer resposta “certa”. Se os clássicos são incontornáveis, a alegria de uma admiração imprevista é redobrada. Confesso que tive mais prazer lendo as cartas de Rilke do que seus poemas, as crônicas de Nelson Rodrigues do que seus romances.

Alguns anos atrás, comecei a trabalhar numa coleção de livros guiada por essas ideias. O título, Marginália, é um termo de origem medieval que faz referência às anotações deixadas pelos leitores nas margens dos manuscritos e páginas impressas. Como leitor acostumado aos livros de segunda mão, que formam boa parte da minha biblioteca, sempre me interessei por essas notas e pelo diálogo às vezes inusitado que estabelecem com o texto principal.

Como escrevi para o texto de quarta capa dos volumes, que agora começam a chegar às livrarias, os títulos da coleção Marginália reúnem textos que costumam habitar as bordas do universo literário. Cartas, diários, artigos de jornal e papéis avulsos de todo tipo compõem os livros, em edições cuidadosas organizadas por críticos e pesquisadores. O interesse por suportes efêmeros e gêneros “menores” de escrita revela lados desconhecidos de grandes autores e ilumina pontos cegos da história literária. Nos termos que interessam nesse caso, marginal é aquilo que foge à norma, surpreende, transforma nossas expectativas. E não seria essa uma definição possível de “literatura”?

Esta semana, aconteceu em São Paulo o lançamento do primeiro volume da coleção. A aventura do estilo reúne ensaios e a extraordinária correspondência que aproximou no final do século XIX dois gênios da literatura moderna: o americano Henry James e o escocês Robert Louis Stevenson. Intitulado A perda de si, o próximo volume está no prelo. Trata-se de uma seleção de cartas de Antonin Artaud organizada por Ana Kiffer, e por ela traduzida com Mariana Patrício. De tão importante para poeta e dramaturgo francês, escreve Ana Kiffer em seu prefácio, “sua correspondência obriga a questionar o lugar normalmente dado às cartas enquanto acontecimento ‘marginal’ à obra”.

Espero que o leitor encontre nos livros da coleção motivos para rever sua própria relação pessoal de afetos literários, descobrindo textos novos de autores talvez já conhecidos, como Gertrude Stein, ou abrindo espaço para nomes menos célebres, mas imperdíveis, como o francês Félix Fénéon – dois dos próximos escritores com títulos na fila (que não é um ranking) da coleção.

TAGS: A aventura do estilo, Coleção Marginália, Miguel Conde,

Comentários sobre "Às margens do cânone"

    • Olá, Fernanda!
      Obrigada pelo comentário!
      Não temos previsão para esse lançamento, mas fique de olho em nossas redes que avisaremos quando houver novidade.
      Obrigada e boas leituras sempre!

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