As letras que o tempo esqueceu
O autor Samir Machado fala sobre a diagramação do livro "Quatro soldados"17 de agosto de 2017
Uma notinha ao final de Quatro Soldados chama a atenção para um detalhe muito importante do livro (ao menos para mim), mas que provavelmente a maioria dos leitores não perceberão até chegar ao fim.
Por meu livro ser ambientado no Brasil colônia do século 18, houve um esforço grande em simular o modo de falar (e em alguns casos, de escrever) muito particular da época. Esse trabalho recebeu um grande reforço gráfico e visual através da tipografia.
Pois que a fonte utilizada para compor a edição de Quatro Soldados lançada pela Rocco, chamada Isidora, nada mais é que um resgate da fonte tipográfica utilizada no primeiro livro impresso publicado no Brasil, em 1748.
A história é interessante: como forma de controlar o que os brasileiros pensassem, a coroa portuguesa simplesmente proibiu a impressão de todo e qualquer livro no Brasil, durante todo o período colonial. Isso não impediu, contudo, que uma gráfica clandestina se instalasse no Rio de Janeiro, em 1748 e imprimisse um panfleto só para elogiar o novo bispo, recém-chegado à cidade.
O panfleto, que se chama A Relação de Entrada que fez o Excelentíssimo e Reverendíssimo Bispo D. Fr. Antonio do Desterro Malheyros, Bispo do Rio de Janeiro, foi impressa por Isidoro da Fonseca, com autorização do governador. Tão logo Portugal soube, o governador fechar a gráfica imediatamente. Restou o documento, o primeiro e por muito tempo único livro impresso no Brasil.
Passados 250 anos, a arquiteta Laura Lotufo desenvolveu, como trabalho de conclusão, uma recuperação das fontes tipográficas de Isidoro da Fonseca, e as converteu para uso digital – apropriadamente chamada Isidora.
Essa fonte traz algumas particularidades muito uteis como, por exemplo, o “S longo”. Percebi pesquisando a linguagem dos livros em português do século 18, aquela letra estranha, que se parece com um f minúsculo mas sem o traço, e que era aplicada sempre que a letra S aparecia no meio da palavra – nunca no começo ou no fim, onde se mantinha o s comum usado até hoje.

Trecho de “Viagens de Altina”, de João Caetano de Campos, considerado o Gulliver português.
É curioso que letras, de certo modo, também saem de moda. Em algum momento da História, o “s longo” simplesmente parou de ser usado (talvez, justamente, por se parecer tanto com um f minúsculo, e fazer todo mundo parecer fanho). Mas como tenho um certo apego pela letra S — é a inicial do meu nome, remete ao S do Super-Homem, lembra o cifrão do Tio Patinhas — decidi que ela também deveria aparecer, em certos momentos, no contexto do livro.
Só não me pergunte como isso fica na leitura do livro digital. Tem coisas que só o prazer de um livro impresso em papel proporcionam.