Animais folclóricos e onde habitam
por Samir Machado de Machado9 de agosto de 2017
Há uma frase atribuída a Michelangelo (e que foi parar em Quatro Soldados) que diz: “a introdução de elementos fantásticos numa obra diverte e entretém os sentidos, pois o leitor deseja imaginar coisas inclassificáveis e impossíveis, e compreender estes desejos demonstra maior respeito à Razão do que reproduzir mais do cotidiano ordinário”.
As vezes parece que, por décadas, os seres fantásticos do folclore brasileiro ficaram restritos às histórias infantis, do Sítio do Pica-Pau Amarelo aos quadrinhos da Turma da Mônica, mas não poucos escritores brasileiros contemporâneos – como Christopher Kastensmidt e Felipe Castilho, para citar alguns – vem os devolvendo ao seu aspecto original, mitológico e monstruoso. Pois todo animal mitológico nasce, de certa forma, do medo do desconhecido.

Capelobo, da série Unheimlich, imaginário popular brasileiro (2005), de Walmor Corrêa.
Em Quatro Soldados, os rumos da história – o enfrentamento do pensamento racional do Iluminismo contra a superstição barroca – me fizeram optar por uma abordagem muito específica para seus animais fantásticos: a criptozoologia, uma pseudociência dedicada a comprovar a existência de animais lendários ou extintos.
Em outras palavras: e se criaturas folclóricas, como a Boitatá ou o Jaguarão, fossem talvez frutos do medo e da superstição, ou erros de interpretação de fenômenos naturais – mas com um leve toque de ambiguidade fantástica?

Ondina, da série Unheimlich, imaginário popular brasileiro (2005), de Walmor Corrêa.
A ideia nasceu de uma fusão de elementos. Em 2006, o artista plástico gaúcho Walmor Corrêa produziu uma série de obras intitulada Unheimlich (“assustador”, em alemão), em que concebia autópsias de animais folclóricos brasileiros. A abordagem criptozoológica das pinturas se fundiu com uma empolgada leitura do Baudolino de Umberto Eco.
Outra influência importante foi o livro Monstruário, onde o psicólogo Mario Corso analisa as origens históricas de cada animal fantástico nativo. Foi ali que descobri, por exemplo, que a popular mula-sem-cabeça surge como punição para a mulher que mantém relações sexuais com um padre. Mas que, por motivos que só o machismo encravado na cultura brasileira esquece, também o padre envolvido na infração é punido, e se torna um cavalo-sem-cabeça.

Ipupiara, da série Unheimlich, imaginário popular brasileiro (2005), de Walmor Corrêa.
Em Quatro Soldados, os quatro protagonistas confrontam, em quatro episódios, quatro animais folclóricos nativos que foram retrabalhados sob um viés criptozoológico (que pode, ou não, ser fantástico). Para isso, deixo então quatro charadas:
- a) um dos animais sofreu uma releitura inspirada na história real da Besta de Gévaudan, e – quem sabe? – talvez tenha existido mesmo, distorcido pela imaginação da época,
- b) o confronto com um dos animais é inspirado diretamente no clímax de Harry Potter e a Câmara Secreta (mas, claro, não é um basilisco).
- c) um dos animais talvez não tenha nada de fantástico, exceto pela histeria coletiva que provoca.
- d) um dos animais pode ser apenas uma alucinação. Ou não.