AGORA A GENTE TEM A VIDA
Por Schneider Carpeggiani15 de dezembro de 2015
“Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo.” Um dos mais famosos inícios de romance da literatura do século 20 é justamente a busca por uma paternidade, ainda que morta, ainda que imprecisa, ainda que inútil, mas ainda assim paternidade. Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, exemplifica bem como a história da literatura se confunde com uma longa dinastia de pais mortos à nossa frente.
Cito outros: O outono do patriarca, de Gabriel García Márquez, pai de todo um continente latino-americano, que viu pouco mais do que sucessões de ditadores, de desfiles militares e de carros fúnebres nos últimos cinco séculos; penso sobretudo no mais triste deles, Ivan Ilitch, da novela A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, que transforma o cadáver numa espécie de cavalo de Troia, que não se satisfaz em se decompor sozinho.
O escritor norueguês Karl Ove Knausgård acertou no alvo ao começar sua longa saga pessoal pela narrativa do declínio familiar, com um volume chamado A morte do pai. Sua frase de abertura é exemplar nas simplicidade e precisão dos fatos a serem narrados pelas centenas de páginas à frente: “Para o coração a vida é simples. Ele bate enquanto puder. Então para.” O gatilho da morte é simples. Mas o da paternidade não aceita tamanha praticidade. É preciso matar o pai várias vezes, enterrá-lo inúmeras vezes, chorar sua falência de órgãos e também comemorá-la em silêncio ou nas ruas. O parricídio desmente o coração: a vida não é simples.

Romance clássico chega ao Brasil quatro décadas após seu lançamento original
Mas o verdadeiro parricídio começa pela linguagem; só depois a arma do crime, o caminho do enterro e a localização do corpo podem ser escolhidos. É o que nos ensina o escritor norte-americano Donald Barthelme (1931-1989) em O Pai Morto, romance cujo título não fala sobre a condição de um organismo. As palavras O + Pai + Morto não formam a equação lógica que ergue a travessia da vida até a morte. O pai morto é substantivo próprio, vivo, talvez mais bem compreendido fosse se sua escrita abraçasse recursos como aspas ou travessões. No entanto: a paternidade não é apenas algo pouco simples, também é pouco evidente. Nunca há a certeza definitiva da sua identidade.
O romance parte do momento em que nos aproximamos, inquietos, do corpo, para verificarmos o seu status, o necessário olhar final antes da certeza do adeus: “A cabeça do Pai Morto. A questão é que os olhos dele estão abertos. Encarando o céu. Olhos com dois tons de azul, os azuis do maço de Gitanes. A cabeça nunca se move. Décadas encarando. A fronte é nobre, Deus do céu, o que mais? Ampla e nobre. E serena, é claro, ele está morto, como não estaria serena? Da ponta do nariz de formas elegantes e narinas delicadas até o chão é uma queda de cinco metros e meio, número obtido por triangulação. O cabelo é grisalho, mas um grisalho jovial.” Com a declaração de óbito emitida, comecemos o féretro.
Com tradução do escritor Daniel Pellizzari, o romance de Barthelme chega às livrarias brasileiras pela Rocco, exatas quatro décadas após seu lançamento original, persistindo como aquilo que Italo Calvino vaticinou tão bem como um clássico, “um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer”. Não apenas não terminou o que tinha a dizer, como também não “sabia” a princípio o que dizer, para onde ir ou para quem escrever. É compreensível. Barthelme é autor de um ensaio paradigmático para isolarmos a escrita contemporânea, Not-Knowing, em medidas iguais declaração de fascínio e repúdio ao que chamamos de literatura pós-moderna. “Writing is a process of dealing with not-knowing” (“Escrever é um processo de lidar com o não saber”). O não saber, explica Barthelme, é complexo, porque escrever é uma ação guiada por ansiedade e a certeza mortifica qualquer angústia. “A writer, says Karl Kraus, is a man who can make a riddle out of an answer” (“Um escritor, explica Karl Kraus, é um homem que faz um enigma de uma resposta”), destaca em seguida.
O Pai Morto faz parte de um grupo de livros que justamente trouxe mais enigmas do que respostas para o formato romanesco durante a década de 1970. A saber, alguns deles: A vida modo de usar, de George Perec, e Se um viajante numa noite de inverno, de Calvino. Todas elas, obras parricidas, zumbis e alienígenas num mundo que há muito já bocejava (mas falsamente bocejava) sem pudor diante do mínimo som da palavra “novo”. O Pai Morto é, dessa forma, tanto o retrato do assassino quanto a fotografia da sua vítima.

Donald Barthelme, autor de O Pai Morto
Como autor de O Pai Morto, Barthelme se vangloria por cada página da liberdade de escrever e até de desescrever o que quiser e como quiser. O Pai Morto como personagem é tudo aquilo que esperamos de uma figura que carrega esse nome: é repressão e redenção; é ironia e a alegoria do falo arrasador, que tudo vê, onipresente. É o Pai-Nosso cristão e ocidental. Como romance, O Pai Morto é descrição de um longo enterro, mas não uma cerimônia saudosa e triste, também festiva, porque não se mata apenas o Pai quando se mata o Pai.
Desse tom festivo, de quando tudo precisa ser arrasado, lembro de uma passagem em especial do livro:
“Todo mundo pronto para o grande baile?
Como faremos um baile com apenas duas mulheres?
As mulheres terão de se esforçar em dobro na dança.
Edmund pede a primeira dança.
Não, essa é para o Pai Morto.
Felicidade do Pai Morto.
O Pai Morto e Julie dançando.
Edmundo e Emma dançando.”
E pouco mais na frente o diálogo:
“Você quer alguém novo?
Sempre quero alguém novo.
O que alguém novo tem de tão bom?
É o novo. A novidade”
(Ah os anos 1970…)
O livro e a cerimônia, e a travessia dessa cerimônia, se encaminham para o fim previsível que todos nós temos (e o elemento de “previsível” aqui talvez seja justamente a grande ironia de Barthelme usada como desfecho do seu percurso de desconstruções): há o desejo por um instante a mais depois do instante definitivo e há o buraco com a boca arreganhada a nos esperar. E minutos após eu ter encerrado o livro e a longa morte desse Pai, vejo uma postagem no Facebook de uma amiga, acompanhando a canção “Aint got no/ I’ve got a life”, de Nina Simone, que me serviu como uma espécie de posfácio particular do romance: “Eu não sei o que eles têm, mas a gente tem a vida.” Sim, agora a gente tem a vida. Talvez seja isso.
Jornalista, doutor em teoria literária e curador. Atua como editor do jornal literário Pernambuco