Afetos por água abaixo
Bernardo Ajzenberg fala sobre "Minha vida sem banho"23 de setembro de 2014
Em uma manhã de inverno, Célio toma uma decisão capaz de transformar sua existência modorrenta: parar de tomar banho. A partir deste inusitado exercício de liberdade, o jornalista, escritor e tradutor Bernardo Ajzenberg destila críticas, bem-humoradas, à superficialidade das relações e utopias contemporâneas.
Na entrevista abaixo, Bernardo revela suas verdadeiras intenções por trás do insólito enredo de Minha vida sem banho e ataca a canibalização da comunicação gerada pelas redes sociais. Confira:
Em seu novo romance, Célio é um anti-herói, uma figura burocrática, sem perspectiva, alguém em quem ninguém apostaria. Porém, ao largar um hábito social, o de tomar banho, sua vida se transforma e, paradoxalmente, ele passa a ser visto, aceito, respeitado. O que seu enredo procura criticar?
Acredito que essa história expõe, entre outras coisas, uma das mais tristes mazelas contemporâneas: a valorização tão súbita e excessiva quanto superficial e passageira daquilo que é estranho, supostamente subversivo, escandaloso, mas que, no fundo, aponta para os mesmos impasses vividos pela sociedade desde muitas décadas atrás.
Ao longo do romance, aos fragmentos, três vozes — Célio, Débora, a sua namorada, e Marcos, amigo de seus pais — alternam-se em narrativas que se costuram em torno do protagonista. Em todas elas, identificamos um tema recorrente em sua obra: a solidão. Apesar do encurtamento das distâncias, promovido pela tecnologia, o homem moderno se sente cada vez mais sozinho?
Sem dúvida isso acontece. Sob a ponta do iceberg da hipercomunicação gerada pelas chamadas redes sociais vai-se formando uma camada subterrânea crescente de imediatismo barato, banalização dos afetos, padronização dos sentimentos, canibalização da comunicação real e profunda. A consequência desse conjunto são laços fluidos e solidão. Falamos com todo mundo e com ninguém ao mesmo tempo. Temos cada vez menos gente realmente próxima de nós.
Ter a metrópole de São Paulo como pano de fundo ressalta a condição de Célio como outsider — num espaço de todos, não ter espaço nenhum?
Célio é um jovem na casa dos trinta anos de idade que procura se encaixar em alguma atividade voltada para o “bem”. Atua numa ONG. Mas se defronta com obstáculos íntimos e externos de diferentes níveis que de certa forma o paralisam. Ao mesmo tempo, porém, ele tira, ao final, algumas lições dessas crises e consegue ter um olhar para o futuro menos negativo.
O “banho” (ausente) é uma metáfora poderosa. De que “banho”, afinal, precisamos?
A decisão de parar de tomar banho – com todas as consequências individuais e sociais que isso provoca – reflete, em Célio, uma necessidade profunda de autonomia, de poder escolher seus próprios caminhos ou ao menos batalhar para isso. Ele quer ser um indivíduo, pleno, e não, como se diz, “um número na multidão”. Talvez seja esse o “banho” de que precisamos: a retomada daquilo que nos é próprio e único sem que isso seja algo incompatível com a socialização.
Minha Vida Sem Banho retoma um olhar já lançado em seu último romance, Olhos secos, sobre a geração que cresceu sob o regime militar brasileiro (neste caso, a de Marcos e dos pais de Célio). Por que comparar a geração atual (de Célio), após o fim das utopias, com aquela que viveu sob a ditadura?
Por caminhos diferentes, ambas as gerações buscam realizações semelhantes. E a tragédia é que as duas acabam se frustrando, ao menos nessa história. A geração dos mais velhos, ao menosprezar a ação de Célio, expõe sua própria frustração e rancor. Célio, por sua vez, persegue, a meu ver, também uma utopia, agora relacionada à luta ambientalista.
Há no romance, um microrromance de formação: a história do pai de Célio, Wilson, Waisman, contada pelo amigo Marcos Wiesen. Em que medida esta história (re)forma e confere identidade a Célio?
A história de Wilson se soma à história de Gersh, seu pai e avô de Célio, que sofreu e depois escapou dos horrores do Holocausto. Ou seja, são na verdade três gerações que se complementam, passando pela Europa quase toda dominada pelo nazismo, depois a ditadura militar brasileira (com a experiência de exílio vivido por Wilson em Paris) e o atual desarranjo ecológico cuja solução é polemizada no livro.
No livro, Célio entra num grupo secreto e pretensamente radical chamado de Falanstério. Nesse “ministério da fala”, cheio de ideais nobres, todos falam, leem textos formatados, mas não se aprofundam em nada e trocam poucas ideias. Numa época de intensos e rasos debates em fóruns e redes sociais, onde falar virou uma instituição de afirmação, ainda que sem lastro que a sustente até o próximo post, em que lugar figura o pensamento de fato crítico?
Essa me parece uma das grandes questões trazidas pelo livro se você o aborda pelo plano social e político. Até que ponto a militância ambientalista se choca, ou não, realmente, com os sistemas que em última instância produzem a deterioração do planeta? Como deveria ser essa militância para ter mais efetividade? No plano pessoal: até onde nos engajamos de verdade, autenticamente, em uma causa social sem que transformações profundas se operem em nossa mente, em nossos sentimentos, em nossas relações pessoais?
Leia também:
☛ Um momento de ruptura, por Bernardo Ajzenberg
☛ Trecho do romance Minha vida sem banho