A odisseia de Rimbaud

Por: Vera Lúcia de Oliveira
5 de fevereiro de 2016


o regresso

As peripécias de Jean Nicolas Arthur Rimbaud foram muitas. Descobriu que as vogais têm cores e coloriu a língua francesa. Fez uma viagem ao inferno num barco, bêbado. Disse que “Eu é um outro“, acreditando na alteridade. Amou a liberdade sobre todas as coisas e viveu à margem da sociedade. E muitos foram também os seus descaminhos. Andarilho, vagou por longes terras, passou fome, e o pão que comeu foi aquele que o diabo amassou… Como os destemidos, foi, na noite escura, em busca do prazer! E pagou todos os preços: vício, difamação, humilhação, miséria, fome, doença e morte prematura.

Quem nos conta isso é Lúcia Bettencourt no emocionante O regresso – A última viagem de Rimbaud (Ed. Rocco, 2015), livro que deixaria Isabelle, irmã do poeta, com um nó no peito, pois, além de reabilitá-lo moralmente, é obra de pura poesia. Poesia sobre a poesia daquele que foi o Prometeu moderno, para usar uma de suas expressões; daquele que libertou a poesia das amarras da academia, daquele que trouxe o fogo e reinventou o amanhã. Foi simbolista? Decadentista? Foi moderno, c’est ça.

Rimbaud nasceu em Charleville (Ardenas), França, em 1854, mas achou a cidade pequena demais para ele. Precoce, escreveu seus primeiros textos aos oito anos de idade, versejou em latim, revelando o gênio que o habitava. Fugiu para Paris quase menino, sem dinheiro nem bilhete de trem, sendo preso pela primeira vez. (Na verdade fugia da mãe rude, seca, áspera. Um cacto.) Depois vieram outras prisões. Em Paris, tragado pelo submundo, o bas-fond, na expressão dos franceses, conheceu o inferno das drogas, o absinto, e fez a melhor poesia. Foi um anjo de beleza com seus olhos de um azul translúcido. Era alto e muito magro; pobre, estava sempre malvestido. Um dia conheceu o poeta feio, Paul Verlaine, que foi sua salvação e sua perdição, como diz Lúcia. Viveram um amor que não ousa dizer o seu nome, para parafrasear Oscar Wilde, e escandalizaram Paris. Foram presos, mas nada apagou o fogo que alumiava a força da poesia de ambos. Gênios e malditos…

Arthur-Rimbaud-Aos dezenove anos, questionando o próprio trabalho, abandonou o ofício de poeta, mas não a poesia, que só morreria com ele nos precoces 37 anos de idade. Partiu para a vida de aventureiro e palmilhou muito chão: Bélgica, Holanda, Inglaterra, Alemanha, Áustria. Quase sempre a pé. Depois, na África, buscando ou repetindo, talvez, os passos do pai, grande voyageur que zanzou pelo Oriente Médio e até falou o árabe – esse pai sedutor e ausente que devastou o coração e a vida da mãe, deixando-a com quatro filhos para criar e amarga para sempre.

Rimbaud traficou armas, correu perigo, ganhou dinheiro, viveu no limite e, como Ulisses, desapareceu. Ou quase. Passou doze anos no autoexílio africano, virando outro… Assim como Ulisses na sua odisseia.

Poderíamos ressaltar aqui todos os aspectos da sua vida ordinária e extraordinária, mas pensamos que o leitor fará melhor lendo o livro de Lúcia, que, numa narrativa eficiente, justapõe a primeira e a terceira pessoa do discurso em capítulos curtos, ora dando voz ao poeta, ora ao narrador, que começa invariavelmente por “Dizem que…”, criando distanciamento e dando caráter de lenda ao texto, livrando-o das citações bibliográficas. Isso sem falar da leveza e da qualidade da linguagem corretíssima. Um primor. Rimbaud merece! Esse “enfant terrible” escreveu com todo o rigor da língua de Racine e fez a mais alta poesia.

RimbaudDisseram que a sua vida foi guiada por Apolo, o deus-sol da beleza e da verdade, e também por Plutão, o planeta sombrio. Mas pensamos que sua vida foi regida principalmente por Eros e Tânatos, os deuses do amor e da morte. Pulsão de vida, pulsão de morte, como definiu Freud. Pois o que nele se lançava perigosamente como afirmação da vida e busca do prazer se lançava ao mesmo tempo no desejo de morte, de negação dessa vida que o exauria. Morreu aos pouquinhos. A doença que o consumiu e o levou à perda da perna direita, que o deixou fisicamente incompleto, tornou-o, no entanto, um ser elevado, moralmente superior. Teve o sofrimento dos santos da Igreja, pois conheceu a dor e o abandono que só as almas forte são capazes de suportar.

Ler O regresso é acompanhar a vida desse menino rebelde que nasceu poeta, para o nosso bem e para o seu mal. Um poeta à frente do seu tempo que deixou a poesia convencional vermelha de vergonha. E deixou-nos a necessária lição: se a palavra não for iluminação, melhor a página em branco. “Eu sou o Senhor do silêncio”, predisse ele.

Vera Lúcia de Oliveira é professora de literatura brasileira e portuguesa com pós-graduação pela Universidade de Brasília.

TAGS: Jean Nicolas Arthur Rimbaud, Lúcia Bettencourt, O Regresso, Resenha, Rimbaud, Vera Lúcia de Oliveira,

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.
Campos obrigatórios são marcados *