A força do sonho
Clarice Lispector reflete sobre a riqueza das lendas12 de outubro de 2014
Uma lenda para cada mês do ano. Doze lendas brasileiras – Como nasceram as estrelas, de Clarice Lispector, ganha nova edição este mês como parte do projeto de reedição dos livros infantis da autora. Com belas ilustrações da artista Suryara, o livro reúne histórias do folclore nacional publicadas originalmente em 1977, em forma de calendário.
No texto abaixo, que abre a nova edição de Doze lendas brasileiras, Lispector reflete sobre a riqueza e a importância das histórias da cultura popular. Escrito em dezembro de 1976 e incluído no calendário, em 1977, permanecia inédito em livro.
A força do sonho, por Clarice Lispector
“Há uma realidade nossa que de tão volátil quase nos escapa. Essa realidade nasce de entre lendas como se erguessem gigantes, gnomos, delfins e duendes de dentre névoas. Mas o que se ergue na verdade representa o que há de fantástico, sumarento e rico no País.
Uma lenda é verossímil? Sim, porque assim o povo quer que seja. De pai para filho, de mãe para crianças, é transmitida uma fabulação de maravilhas que estão atrás da História. Como ao redor de uma fogueira em noite escura, conta-se em voz sussurrante um ao outro o que, se não aconteceu, poderia muito bem ter acontecido nesse imaginoso mundo de Deus. E assim oralmente se escreve uma literatura plena e suculenta, em que o espírito secreto de todo um povo vira criança e brinca de “faz de conta”. Brinca? Não, é muito a sério. Pois o que é que pode mais do que um sonho?
A começar por nós mesmos que todas as noites no travesseiro vivemos de uma realidade quase intraduzível por palavras, mas que ninguém pode negar, realidade livre, sem freios e que nos pertence quase mais do que o dia a dia que vivemos. O dia a dia que se torna às vezes mais pobre que o sonho.
O grande sonho acordado de um povo é um símbolo de seu vigor íntimo. As lendas são uma potência. Elas procuram nos transmitir alguma coisa importante que se passa na zona penumbrosa e criativa popular. E o que não existe passa a existir por força mesmo de seu encantatório enredo. Nos grandes centros culturais brasileiros, as lendas infelizmente se perdem, menosprezadas por uma civilização que luta pela vida real. Mas o Brasil é também floresta e interioridade. É pescador em jangadas leves nos mares. Noite misteriosa nos pequenos povoados que se espalham terra adentro, nas matas cerradas, verdejantes e perigosas, cheias de bichos os mais fantásticos e de plantas miraculosas, ciladas em pântanos e límpidos lagos azuis, corre-corre de cascatas, sob um céu nosso tão benditamente estrelado: o Brasil parece mais brasileiro na sua Natureza grandiosa, nas doces histórias para ninar crianças, na doçura de suas esperanças que contagiam também os adultos. Mais brasileiro do que no seu cosmopolitismo de que também, é claro, nos orgulhamos.
Que narremos a nossas crianças as enovelantes lendas nossas neste 1977, ano-chave, porque se o número 7 dá poder, dois 7 acrescentam-nos tanto mais em sorte boa: a década dos 7 é toda perpassada pelo sussurro de uma secreta inspiração. Inspiração que me tocou porque vejo que agora falo do número 7 e de seu fundo mistério e, auxiliada pelos magos, estou neste instante criando uma lenda viva e real, pronta para vicejar no ano que desponta.
Estão vendo que os adultos como eu também criam lendas. Em cada mês deste ano contar-vos-ei uma história ingênua no escurinho íntimo da noite. O que nos dará bem-estar e sorrisos. Para 1977, que é vosso e meu, mandei acender trinta mil lustres nervosos e assanhados de tantos flexos e reflexos e reverberações e réstias de raios, brilhações e fulgurações com os pingentes trêmulos da mais alvoroçada luminosidade.
Luminosidade – é o que vos desejo para 1977. Amém.”
☛ Percorrendo novos caminhos com Clarice, entrevista com a ilustradora Suryara