A baronesa da classe trabalhadora

por Olga de Mello
15 de maio de 2015


ruth-rendell

Em cinco décadas de celebrada carreira literária, a baronesa Ruth Rendell deixava claro sua irritação quando recebia os títulos de “Rainha do Crime” e sucessora de Agatha Christie. Nada que impedisse as manchetes de jornais de todo mundo noticiarem sua morte, em 2 de maio, aos 85 anos, aclamando-a como “digna herdeira de Agatha Christie”. Comparar as duas escritoras é, no mínimo, uma injustiça – em números e em estilos literários. Só a Bíblia e Shakespeare superam os dois bilhões de livros que Agatha Christie vendeu em todo o planeta. Ruth Rendell teve “apenas” 20 milhões de exemplares de seus mais de 60 romances vendidos. Mas enquanto Dame Agatha reforçava, através da literatura, a estrutura social em vigor há séculos nas Ilhas Britânicas, a baronesa Rendell refletia, em suas tramas sombrias, o caleidoscópio cultural que caracteriza a população do Reino Unido contemporâneo.

A estreia de Ruth Rendell, em 1964, elimina a figura consagrada do detetive superdotado – como Sherlock Holmes e Hercule Poirot – das cenas de crime tipicamente inglesas. Personagens e ambientação se superpõem às tramas. Sua Inglaterra é miscigenada, violenta e desiludida. Desaparecem os investigadores infalíveis, as sábias velhinhas bisbilhoteiras, os jovens entusiasmados e românticos, as viagens dos endinheirados a paraísos exóticos. Cavalheiros de chapéu coco são substituídos por desempregados que vivem do seguro social e culpam os imigrantes pela dificuldade econômica no país. No lugar de jovens donas de casa estão mães solteiras dependentes de drogas. Até os belos dias de verão inglês são trocados pelo calor opressivo do aquecimento global. Acompanhando, por vezes atônito, tantas transformações, está o inspetor Reginald Wexford, à frente da delegacia da fictícia cidade de Kingsmarkham, desde Noturno para Margareth, seu primeiro livro.

Além de aliar o suspense psicológico à rotina da investigação policial, as 24 histórias ambientadas em Kingsmarkham – ao longo de 43 anos –  apresentam pequenas doses de humor e romantismo, em contraponto à brutalidade de crimes motivados não apenas por ganância, ciúmes ou poder. Seu principal protagonista foi adaptado aos novos tempos, ganhando feições mais liberais e demonstrando serenidade diante de padrões de comportamento pouco convencionais. Ruth Rendell declarava abertamente que Wexford era seu alter ego literário e, por isso, defendia causas que ela advogava no Parlamento, onde teve participação ativa a partir de 1997, quando a rainha Elizabeth II lhe concedeu o título de nobreza – que dá direito a uma cadeira no legislativo inglês. Em entrevistas ela contava que, ao perceber que teria de “conviver com o cara” por muito tempo, tratou de torná-lo mais sensível, menos ranzinza, evitando, como dizia, que Wexford fosse a mistura do comissário Jules Maigret [i] com um detetive particular norte-americano.

Interessada em abordar uma temática mais densa, sem cuidar dos aspectos investigativos, Ruth Rendell assinou diversos thrillers psicológicos sob o pseudônimo de Barbara Vine, sem esconder a autoria – o que, sem dúvida, garantiu a boa aceitação dos romances pelo público. A partir de 1990, as narrativas privilegiam o indivíduo e sua inserção na realidade, falando sobre tráfico de crianças, violência doméstica, racismo, circuncisão feminina, celebridades que escondem sua sexualidade através de casamentos de fachada, anorexia, pedofilia e jornalistas ávidos por escândalos envolvendo políticos e artistas. A denúncia da opressão das mulheres confinadas ao ambiente doméstico claustrofóbico é constante desde seus primeiros trabalhos. Considerava o feminismo uma condição natural a qualquer mulher. “A mulher que não é feminista está escondendo alguma coisa”, afirmava em entrevistas.

Vamos passear no bosque_boxO estilo quase jornalístico na descrição de fatos e crimes é complementado, por Ruth Rendell, na apresentação de personagens de reações inesperadas, dúbias e contraditórias. A aparente simplicidade do texto – em alguns trechos em estilo quase jornalístico – envolve o leitor através da força desses personagens calcados na realidade. Em Vamos passear no bosque, durante uma temporada de tempestades e inundações, os pais de dois adolescentes têm reações bem diversas diante do desaparecimento dos jovens. A mãe acredita na morte por afogamento dos filhos; o pai, aposta que eles fugiram de casa, somente para chamar a atenção da família. Wexford, por sua vez, comanda as morosas buscas, enquanto ele próprio sofre com o fim do casamento de uma das filhas. Três anos depois, foi publicado Lágrimas, que discute os novos arranjos familiares através de duas jovens mães solteiras que são assassinadas, enquanto a filha de Wexford, já divorciada, está grávida do ex-marido e tem planos de entregar a criança a ele e à nova namorada, que é estéril.

Filha única de dois professores, Ruth Barbara Grasemann foi repórter até a metade dos anos 1950, por não mencionar a morte de um orador – durante a palestra que ela deveria estar cobrindo. Desistiu do emprego e casou-se – duas vezes – com o jornalista Don Rendell, pai de seu único filho, Simon. Reverenciada como a renovadora da literatura de mistério britânica, ganhou quatro prêmios Edgar e quatro Dagger.  A mais conhecida adaptação de sua obra para o cinema é Carne trêmula, dirigida por Pedro Almodóvar, não era, no entanto, a que a escritora mais gostava. Preferia Mulheres diabólicas, de Claude Chabrol, baseado em Um assassino entre nós. A mais recente versão de um de seus contos é La nouvelle amie, lançada em 2014 pelo cineasta François Ozon.

Olga de Mello é jornalista.

 Conheça as obras de Ruth Rendell disponíveis no catálogo da Rocco

[i] Entre 1931 e 1972, o Comissário Jules Maigret protagonizou mais de 100 novelas e contos do escritor belga Georges Simenon (1903-1989).

TAGS: Romance policial, Ruth Rendell,

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.
Campos obrigatórios são marcados *