10:04: um livro para escritores (e muito mais para leitores)
por Luisa Geisler6 de abril de 2018
Como a dicotomia e as piadinhas gostam de estabelecer, existem dois tipos de pessoas no mundo. Existem as pessoas que comem pipoca no cinema e as que não comem. Existem as pessoas que dormem cedo e as que não dormem. As que têm boa memória e a outra não me lembro. Também tem a piada de “existem três tipos de pessoas no mundo: as que sabem matemática e as que não sabem.” Quer dizer, essas dicotomias são fáceis pela abrangência. Então, acho que é seguro dizer, que existem dois tipos de pessoas no mundo: leitores e escritores.
Estação Atocha, o primeiro livro de Bem Lerner, me pareceu um livro para escritores. É a história de Adam Gordon, um jovem talentoso autor, que recebe uma bolsa prestigiosa na Espanha, tentando entender a si mesmo e sua própria literatura no processo. É um livro brilhante? É. Uma leitura deliciosa. Mas a quantidade de vezes que ele faz piadas internas sobre fazer poesia contra fazer prosa, a quantidade de vezes que ele fala do processo de criação sem falar do processo de criação, a barreira entre o lazer e trabalho que ele vê como existente na literatura, torna um livro um pouco hermético para não-escritores.
Por ser escritora, não consegui avaliar o livro de forma neutra. Eu o adorei, justo por falar de temas comuns à minha vida.
Mas 10:04, o novo livro de Ben Lerner, se mantém na área cultural, mas faz a grande revolução do autor desde que começou a fazer prosa além de sua poesia. É um livro necessário. Não para escritores, não para pessoas de letras. Para todo mundo que existe no século XXI.
Dizer que o livro fala de um escritor que acaba de assinar um contrato de seis dígitos para o seu próximo livro, se descobre potencial para uma cirurgia cardíaca, decide virar doador de esperma para sua melhor amiga e sobrevive a dois furacões que atravessam a cidade de Nova York seria como descrever bolo como uma mistura de farinha e açúcar.
10:04 é um livro que se passa entre dois furacões. É um livro que caminha entre ficção e realidade — porque houve dois furacões em Nova York na época da escrita do livro: Irene e Sandy. Porque o protagonista se chama Ben, e é um meio-termo entre poeta e prosador. É um livro pseudofactual recontando pseudomemórias com pseudoficção e traços de pseudopoesia. Ficção e realidade são os dois furacões que guardam a entrada e a saída da narrativa.
É claro que “um escritor escreve sobre escrever” é quase um gênero por si só. É um gênero que pode ser sacal. É um pouco o pecado de Estação Atocha. E 10:04 se torna uma espécie de redenção de Ben Lerner com o estereótipo. Ele descreve ir a mostras de arte, fala de um Instituto de Arte da Perda Total, os trabalhos de Donald Judd, fala de curadorias, discute morte e paternidade. Mas ele traz minhas questões favoritas, as pedestres; como uma lembrança infantil de De Volta Para o Futuro, as ramificações de achar que terminar com alguém vai magoar a pessoa. O conhecimento acadêmico, e às vezes enciclopédico, colide com a descrição de uma noite de sono. Colide, às vezes de forma hilária, com a descrição de fazer uma janta para um desconhecido protestante do Occupy Wall Street.
Existe uma calma, uma profundidade e um humor ao modo de escrever de Ben Lerner. Existe a noção da hipocrisia de uma tentativa moralista de viver de forma “ética e moralmente correta”, que ele mesmo pratica.
Como comentei, 10:04 poderia parecer um livro para escritores e intelectuais. É um livro que questiona o que quer dizer pensar, se preocupar e criar no contexto em que estamos. É um livro sobre uma crise próxima. Mas seu grande acerto é ser um livro para todos. Afinal, estamos todos entre um furacão e outro, seja com ou sem arte. Melhor que seja com.
*Luisa Geisler é mais tradutora do que escritora. No meio dessa bagunça, tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Pacífico) e acha a ideia simpática.