A revolução acontece aqui também
Na data da assinatura da Lei Áurea, Lorrane Fortunato escreve sobre representatividade, resistência e Filhos de sangue e osso13 de maio de 2019
A Lei Áurea foi assinada há 131 anos, mas as sequelas da escravidão permanecem. A escravidão negreira teve um diferencial marcante em relação aos demais regimes escravocratas ao longo da história: o processo de desumanização. Os escravizados foram arrancados de suas famílias, idiomas, culturas, religiões, ancestralidades e hábitos. Jogados nos porões de navios, transportados como mercadorias. Chegaram a espalhar que esses não possuíam alma.

Tomi Adeyemi, norte-americana de origem nigeriana, se inspirou nos Orixás para criar o Reino de Orïsha
Filhos de sangue e osso não é um livro sobre a escravidão no Brasil, embora a autora Tomi Adeyemi tenha conhecido a mitologia iorubá em uma visita à Salvador. Mas as consequências da escravização do povo negro e sua reação no último século perpassam toda a obra. Não só isso, também é importante a representatividade de termos uma autora negra com enorme destaque internacional, contando uma história ambientada em um reino inspirado na África e apenas personagens negros.
O processo de miscigenação no Brasil e a repressão chegaram a enfraquecer e até cortar os laços de muitos negros e negras com sua identidade e origem africana. O orgulho de ser negro foi roubado e substituído pela afirmação que ser negro é algo ruim. Ensinaram que deveríamos sentir vergonha da nossa cor, dos nossos traços, dos nossos cabelos crespos. O nascimento de pessoas negras cada vez mais claras era celebrado e desejado.
Essa temática é abordada em “A redenção de Cam”, de Modesto Brocos. Na pintura datada de 1895, vemos a celebração pelo embranquecimento causada pela miscigenação.

A Redenção de Cam. Fonte: Itaú Cultural
Você nos esmagou para construir sua monarquia sobre o nosso sangue e ossos. Seu erro foi nos deixar vivos. Foi pensar que nunca revidaríamos!”
Em Filhos de sangue e osso, há um processo semelhante. Tudo começa com um rei proibindo a magia dos maji – grupo de pessoas que conseguia utilizar magia a partir de sua ligação com os deuses e deusas. Em seguida, em um genocídio todos os maji adultos são assassinados.

Foto do livro Filhos de sangue e osso nas ladeiras de Salvador. Crédito da imagem: Menina da Bahia
Vale dizer também que a obra não traz o ideal ocidental da estética branca. Inclusive, existe uma evidente discussão sobre colorismo. A nobreza do Reino de Orïsha é composta em grande parte por negros de pele clara, numa representação do que ocorre em nosso mundo, em que tendem a sofrer menos preconceito e, em alguns casos, ascender com menos dificuldade e até mesmo perpetuar o preconceito com retintos. No livro, a elite se preocupa em clarear a pele e afinar os traços, enquanto maji, camponeses e mais humildes são mais escuros — e oprimidos.
Onze anos depois do extermínio dos maji, que ficou conhecido como a Ofensiva, os mais novos, que viram seus pais serem assassinados, estão tentando revidar. Resgatando sua cultura, sua magia, sua identidade e acabar com a ditadura do rei. Ele, por sua vez, tentará de tudo para não deixar os maji terem voz novamente.
“Sem magia, eles nunca nos tratarão com respeito. Precisam saber que podemos revidar. Se queimam nossa casa… Eu queimo a deles também.”
Podemos fazer um paralelo com o movimento negro. Nos últimos anos discussões acerca do orgulho negro vêm cada vez mais ganhando pauta. Estamos aprendendo a amar nossas culturas, cores, traços e cabelos. Estamos aprendendo a ter orgulho de quem somos e dos nossos iguais. As conquistas deles são as nossas conquistas.
Pensando nisso, é realmente admirável ter uma autora como Tomi Adeyemi num gênero tão nichado como a fantasia. O seu livro nos traz representatividade e identificação. É realmente um livro muito importante e necessário! E torcemos que a literatura negra ganhe cada vez mais espaço nas editoras brasileiras.

“Não vou deixar sua ignorância silenciar minha dor.”
Seguimos lutando, ainda não ganhamos essa luta e nem estamos perto disso. O genocídio negro aconteceu e acontece todos os dias, o silenciamento aconteceu e acontece, a subjugação aconteceu e acontece. As coisas não mudaram tanto assim. Porém hoje conseguimos resgatar nossa ancestralidade, autoestima, liberdade, respeito e usamos nossas vozes para gritar cada vez mais alto.
A abolição da escravatura não acabou com a Lei Áurea, apenas começou. Essa é a magia do povo negro no Brasil. A revolução dos filhos de sangue e osso acontece aqui também.
“A realidade nos dizia que fracassaríamos. Mas nós lutamos, lutamos. Perseveramos. Nos erguemos.”
Lorrane Fortunato nasceu no frio outono de 1995. Tem a convicção de que em suas veias corre o amor pelos livros, amor esse que a motivou a criar o “Resistência Afroliterária” um portal literário focado em literatura negra. Estudante de Letras – Espanhol, usa seu tempo livre para escrever. É autora de A rota que me levou a você, As promessas que você me fez e do conto As fantasias que eu criei de você, na coletânea Confetes e serpentinas. Sabe a importância da representatividade, por isso, em suas histórias traz protagonistas negras e temas ligados à negritude.